Já vieram com um
papo cabeçudo de que isso é bossa nova, que isso é muito natural e se chama
gentrificação, a substituição inevitável de moradores e comércios tradicionais
dos bairros por novos usuários, antes alocados em outras geografias da cidade.
O tintureiro da Dias Ferreira deixaria o lugar para um restaurante de ceviche.
O sobrado do Jardim Botânico viraria um hostel para estudantes estrangeiros.
Dizem que isso é a
roda viva do urbanismo, a Praça do Lido ficar com o mesmo perfil do Posto 6. Eu
não seria tão cínico. Em bom português, os bairros estão acabando.
Eu não seria tão
pernóstico em inventar uma palavra rebarbativa dessas para significar a
espantosa realidade de que os bairros do Rio estão ficando iguais uns aos
outros. O Cosme Velho, outrora uma grande fazenda, onde se era capaz de sentir
o fantasma do Machado de Assis vagando em paz no silêncio da tarde, ficou a
cara do que era a recente Laranjeiras. Esta, por sua vez, também já foi uma
fazendola, mas há pelo menos uma década não se difere em nada do Catete, outro coitado.
Ele teve a pompa do palácio presidencial, o aconchego de vilas residenciais, e hoje,
como os bairros vizinhos, é apenas uma multidão de carros estacionados, prédios
pichados com garranchos débeis e negócios pobres parecidos com os da Glória.
Aos poucos, a cada
inauguração de estação de metrô, de franquia do Kilograma ou de academia Smart
Fit, os bairros perdem suas identidades clássicas. Transformam-se no mesmo
aglomerado de estacionamentos e multidões apressadas, pessoas que por sua vez
vestem as mesmas camisetas e jeans, todas vindo não se sabe de onde e seguindo
para o bairro seguinte que é gêmeo do anterior, tudo na gentrificada
esquizofrenia urbana que nos acomete.
Não foram só o
geraldino no Maracanã e o Tatuí na praia que viraram nostalgia carioca. Eram dezenas
de bairros. O cidadão, de acordo com suas idiossincrasias, escolhia o que melhor
lhe servia para viver. Funcionários públicos gostavam da Tijuca, aposentados
nas Forças Armadas iam para a paz do Leme. Cada bairro tinha o seu maluco de
rua, o comerciante típico e outros personagens próprios.
Juntos, cada um com seu quadrado de particularidades, os bairros transformavam
o Rio numa grande cidade. Foram-se todos, despejados pelas redes de drogarias Raia
e operadoras de celular.
Se chamam isso de
gentrificação, eu estou fora e peço licença para mandar Detefon no meu lugar.
Mando também em defesa do Rio aquele soldadinho da bomba do flit, o guarda
noturno com seu apito, o Cosme e Damião, a banda do Corpo de Fuzileiros Navais
e os briosos detetives da Invernada de Olaria.
Alguém que chegue à
Praça General Osório, berço da Banda de Ipanema, e, olhando ao redor, pergunte,
“Isso aqui ainda é Copacabana?”, não passará por maluco.
Foram-se os
militares que davam o perfil petequeiro ao Posto 6, os boêmios intelectuais de Ipanema
e os velhinhos aposentados ao redor do tabuleiro de damas da Serzedelo Correa.
O metrô vai chegar ao Leblon — e nada contra uma cidade com transporte melhor —,
mas aos poucos desaparecerão na turbamulta as suas deliciosas peruas no footing
despreocupado de depois das saladinhas no Celeiro. Vai ficar igual a Ipanema,
que, como se viu no parágrafo anterior, hoje está igual a Copacabana.
Gentrificação, como
se dizia em Vaz Lobo, é o escambau — mas o subúrbio também está corroído pela
praga. A Transcarioca passará no meio de quintais, pagodes e jongos da
Serrinha. É como se a prefeitura tivesse ouvido o funk de ostentação, o clamor
dos garotos da região que sonham com bens de consumo internacionais, e
resolvesse — ah, é?! — radicalizar o processo, asfaltando uma cultura que agora
será cruzada a mais de 100km por hora. O Largo do Campinho será a Los Angeles mais
pobre do mundo. O sertão não virou mar, como queria o filme do Glauber Rocha. Vaz
Lobo periga virar Madureira.
Uma cidade é feita
de diferenças geográficas, da capacidade que se tinha de perceber dentro do
Jardim Botânico o sub-bairro da Ponte das Tábuas. Hoje somos todos cercados pelos
mesmos bares da Devassa e promoções da Casa e Vídeo. Buscava-se a Gávea, por
exemplo, para encher os olhos com o verde da mata ou com a graça das meninas da
PUC. Hoje é um bairro dominado pelo shopping e o desejo evidente de se deixar
possuir pelo comércio sem personalidade que saiu de Botafogo, seguiu pelo
Jardim Botânico e aos poucos, com a ajuda do metrô no campus da universidade,
vai tomar os arredores da Av. Marquês de São Vicente.
O borogodó do Rio
era o layout final, o design feito pelo escritório do Criador que harmonizava a
Pequena África, os bairros negros ao redor da Praça Onze, com as mansões da São
Clemente. Reclamou-se tanto que a cidade era partida, e ela agora ficou toda
igual — mas sem o ganho de perder a violência que antes havia apartado as zonas
ricas das pobres. Ficamos uniformizados, todos dominados pelos crachás do Bradesco
e o fura-fura das casas lotéricas. Zero de personalidade, um imenso cemitério de
mesmice geográfica, rumo ao triste futurismo de uma cidade com um único, imenso
e estressado bairro.
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