MEUS BAIRROS (10/02/2014)

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Já vieram com um papo cabeçudo de que isso é bossa nova, que isso é muito natural e se chama gentrificação, a substituição inevitável de moradores e comércios tradicionais dos bairros por novos usuários, antes alocados em outras geografias da cidade. O tintureiro da Dias Ferreira deixaria o lugar para um restaurante de ceviche. O sobrado do Jardim Botânico viraria um hostel para estudantes estrangeiros.

Dizem que isso é a roda viva do urbanismo, a Praça do Lido ficar com o mesmo perfil do Posto 6. Eu não seria tão cínico. Em bom português, os bairros estão acabando.

Eu não seria tão pernóstico em inventar uma palavra rebarbativa dessas para significar a espantosa realidade de que os bairros do Rio estão ficando iguais uns aos outros. O Cosme Velho, outrora uma grande fazenda, onde se era capaz de sentir o fantasma do Machado de Assis vagando em paz no silêncio da tarde, ficou a cara do que era a recente Laranjeiras. Esta, por sua vez, também já foi uma fazendola, mas há pelo menos uma década não se difere em nada do Catete, outro coitado. Ele teve a pompa do palácio presidencial, o aconchego de vilas residenciais, e hoje, como os bairros vizinhos, é apenas uma multidão de carros estacionados, prédios pichados com garranchos débeis e negócios pobres parecidos com os da Glória.

Aos poucos, a cada inauguração de estação de metrô, de franquia do Kilograma ou de academia Smart Fit, os bairros perdem suas identidades clássicas. Transformam-se no mesmo aglomerado de estacionamentos e multidões apressadas, pessoas que por sua vez vestem as mesmas camisetas e jeans, todas vindo não se sabe de onde e seguindo para o bairro seguinte que é gêmeo do anterior, tudo na gentrificada esquizofrenia urbana que nos acomete.

Não foram só o geraldino no Maracanã e o Tatuí na praia que viraram nostalgia carioca. Eram dezenas de bairros. O cidadão, de acordo com suas idiossincrasias, escolhia o que melhor lhe servia para viver. Funcionários públicos gostavam da Tijuca, aposentados nas Forças Armadas iam para a paz do Leme. Cada bairro tinha o seu maluco de rua, o comerciante típico e outros personagens próprios. Juntos, cada um com seu quadrado de particularidades, os bairros transformavam o Rio numa grande cidade. Foram-se todos, despejados pelas redes de drogarias Raia e operadoras de celular.

Se chamam isso de gentrificação, eu estou fora e peço licença para mandar Detefon no meu lugar. Mando também em defesa do Rio aquele soldadinho da bomba do flit, o guarda noturno com seu apito, o Cosme e Damião, a banda do Corpo de Fuzileiros Navais e os briosos detetives da Invernada de Olaria.

Alguém que chegue à Praça General Osório, berço da Banda de Ipanema, e, olhando ao redor, pergunte, “Isso aqui ainda é Copacabana?”, não passará por maluco.

Foram-se os militares que davam o perfil petequeiro ao Posto 6, os boêmios intelectuais de Ipanema e os velhinhos aposentados ao redor do tabuleiro de damas da Serzedelo Correa. O metrô vai chegar ao Leblon — e nada contra uma cidade com transporte melhor —, mas aos poucos desaparecerão na turbamulta as suas deliciosas peruas no footing despreocupado de depois das saladinhas no Celeiro. Vai ficar igual a Ipanema, que, como se viu no parágrafo anterior, hoje está igual a Copacabana.

Gentrificação, como se dizia em Vaz Lobo, é o escambau — mas o subúrbio também está corroído pela praga. A Transcarioca passará no meio de quintais, pagodes e jongos da Serrinha. É como se a prefeitura tivesse ouvido o funk de ostentação, o clamor dos garotos da região que sonham com bens de consumo internacionais, e resolvesse — ah, é?! — radicalizar o processo, asfaltando uma cultura que agora será cruzada a mais de 100km por hora. O Largo do Campinho será a Los Angeles mais pobre do mundo. O sertão não virou mar, como queria o filme do Glauber Rocha. Vaz Lobo periga virar Madureira.

Uma cidade é feita de diferenças geográficas, da capacidade que se tinha de perceber dentro do Jardim Botânico o sub-bairro da Ponte das Tábuas. Hoje somos todos cercados pelos mesmos bares da Devassa e promoções da Casa e Vídeo. Buscava-se a Gávea, por exemplo, para encher os olhos com o verde da mata ou com a graça das meninas da PUC. Hoje é um bairro dominado pelo shopping e o desejo evidente de se deixar possuir pelo comércio sem personalidade que saiu de Botafogo, seguiu pelo Jardim Botânico e aos poucos, com a ajuda do metrô no campus da universidade, vai tomar os arredores da Av. Marquês de São Vicente.


O borogodó do Rio era o layout final, o design feito pelo escritório do Criador que harmonizava a Pequena África, os bairros negros ao redor da Praça Onze, com as mansões da São Clemente. Reclamou-se tanto que a cidade era partida, e ela agora ficou toda igual — mas sem o ganho de perder a violência que antes havia apartado as zonas ricas das pobres. Ficamos uniformizados, todos dominados pelos crachás do Bradesco e o fura-fura das casas lotéricas. Zero de personalidade, um imenso cemitério de mesmice geográfica, rumo ao triste futurismo de uma cidade com um único, imenso e estressado bairro.

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