Alguém aí? (03/03/2014)


Fala-se para as paredes, eis a sensação de escrever numa segunda-feira editada por Momo

Tinha o sujeito que se fantasiava de disparates, ia para a Avenida Rio Branco segurando o cartaz do Bloco do Eu Sozinho, e jazia de um lado para o outro, meio triste, meio desconfiado de que o verbo jazer não permite a ninguém ir de um lado para o outro na avenida iluminada.
Mas, enfim, lá ia o sujeito. Às vezes parado, às vezes saracoteando, levava ao seu jeito a liberdade semântica da segunda-feira magra de Carnaval. Carregava a plena certeza de que estava irremediavelmente só neste mundo de meu Deus e poderia colocar os verbos que quisesse nas frases de fantasia que escolhesse. “O que que há com a sua baratinha, que não quer funcionar”, cantava ele, e eu daqui faço eco para o vazio da imensa plateia ausente.
O jornalista de segunda-feira de Carnaval é uma espécie de Bloco do Eu Sozinho das antigas, um sujeito imbuído da estranha sensação de que tanto faz jazer de um lado para o outro ou jazer fixo, morto sob a lápide das conjugações verbais. Tanto fará como tanto fa-lo-á. Ninguém lerá, ninguém quer saber o que que há com a baratinha dos outros, todos empenhados no delicioso esforço de tratar de colocar em movimento o motor da sua. A única preocupação que se deve ter num dia desses é com aquele cara que está no salão brincando com pó de mico no bolso. O resto vale tudo — menos escrever coisa com coisa no grande jornal da capital.
Hoje não tem Gay Talese, Rubem Braga ou quaisquer desses doutores do texto organizadinho. Quem escreve essas mal traçadas linhas — e afina o ritmo das frases com o chocalho da memória carnavalesca — é Ruy Rey, Bill Far, Jorge Veiga, os Trigêmeos Vocalistas, os Legionários Toddy, os nudistas da ilha da Luz Del Fuego e também os repórteres da Volante do Pallut da Rádio Continental, aquela que, ontem, hoje e sempre, é a casa da notícia.
O ideal de hoje seria um texto ao estilo do deputado baiano da marchinha (“vou falar pouco pra falar do coco, se a turma aguenta eu falo da pimenta”) ou do general da banda (“mourão mourão, vara madura que não cai”). Mas se não tem tu vai tu mesmo, e hoje vai ser tudo comme Il faut, na base do bigorrilho. Ao zero de audiência some-se o zero de coerência, e mande-se a papelada para a gráfica. Antes, porém, eu saúdo os Anjos do Inferno, os Onze Homens de Ouro, os ossos da Dana de Tefé, as pílulas de vida do Dr. Ross e as duas polegadas a mais da Marta Rocha.
Esta é a turma que comanda o bloco da crônica de hoje, um dia em que nem o ombudsman veio trabalhar. Na segunda-feira de Carnaval a página feminina deveria ser editada pela Chiquita Bacana e o editorial, pelo Zé Pereira. Ebreia, a leitora que todos os dias manda um email esfregando os erros dos colunistas na cara do editor-chefe, também descansou o lápis vermelho. Esse ano ela vai sair de Buda e quem quiser ver é só cair no samba, é só se juntar à turma do funil que sairá da garagem do jornal pela Marques de Pombal, dobrará à direita na Frei Caneca e, ao chegar à Marquês de Sapucaí, gritará do alto da proa o Ôpa! homem não!.
Fala-se para as paredes, eis a sensação (alguém aí?) de escrever numa segunda-feira editada por Momo. Os leitores estão todos mergulhados nas águas cristalinas de Angra ou nas águas douradas de uma casco escuro estupidamente gelada, aquela do “quem gosta de cerveja bate o pé, reclama, quero lama, quero lama”. Ninguém está lendo jornal num dia desses, e com toda a razão. Quem vai competir com as ruas prenhes daquela garota feito as laranjas da Bahia, a garota Saint-Tropez com o umbiguinho de fora?
É segunda de Carnaval, o Rio de Janeiro amanheceu cantando, cercado de blocos por todos os lados, e os leitores que até ontem estavam aqui, ilustrando-se com nossas sabedorias, foram tomados todos pela aflição de que é preciso aproveitar, rosetar, sassaricar e se mandar para a Maracangalha que cada um escolher como a Pasárgada que lhe apetece ao destino. O mulherio em desvario vem para as ruas em bando, tirando a roupa no Baile da Cremação das Tristezas, no América, onde a morena está fantasiada de legenda da revista Manchete e vai passar a noite inteira assim, sambando em cima da grande mesa que forra o salão da memória nacional.
Ninguém nos lê, só o eco é companheiro e testemunha. E se até o copy-desk dessas incongruências carnavalescas está de folga, tudo é permitido a quem escreve — e eu aproveito o ensejo não só para escrever ensejo, como sempre foi o meu desejo mas o bom gosto proibia, eu aproveito o ensejo para botar o bloco na rua. Agradeço penhorado ao patrocínio do Biotônico Fontoura e me despeço cantando, de minha autoria e Braguinha, a marcha “Lá vem ela de vestido saco, éééé gostosa, rebolando, garota enxuta, eééé melindrosa”.
No tempo do sujeito do Bloco do Eu Sozinho, os jornais não circulavam na segunda feira de carnaval, na sabedoria gutemberguiana de que era perda de tempo. Estava todo mundo de olho apenas em quem lhe ia lançar uma prise de lança perfume no olho. É Carnaval, ninguém quer ler editorial — e se o espaço carecesse de uma opinião política, algum pitaco enérgico sobre os black blocs, o melhor seria respeitar a data e imprimir a marchinha “Vai, com jeito vai, se não um dia a casa cai”. Estaria dado o recado. Na página de previsão do tempo, coloque-se a letra de “Tomara que chova três dias sem parar”. As marchinhas sabem tudo.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/alguem-ai-11766155#ixzz2wbNWAS77 
© 1996 - 2014. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. 

Comentários