Dois lutadores (23/02/2014)



Há muito derramamento de sangue para se conseguir realizar bem qualquer trabalho e, se eu fosse o Joaquim Ferreira lutador, na hora de subir ao ringue eu deixaria isso bem claro.
Declaro para os devidos que definitivamente não sou eu, embora carregue o mesmo Joaquim Ferreira no nome, embora enfrentemos a vida com a mesma disposição para dar e levar porradas, eu digo mais uma vez que não sou eu o lutador de MMA, um outro Joaquim Ferreira que nos octógonos internacionais também atende pelo apelido de Mamute.Viemos ao mundo com o mesmo nome e sobrenome, mas enfrentamos a vida em ringues diferentes. Suamos. Pomos a cara à tapa. Às vezes ele encaixa um golpe por baixo da guarda adversária. De vez em quando eu tenho uma ideia. O resto é a pancadaria comum aos que existem. Dedo no olho, chute na linha abaixo da cintura. Os inimigos mostram os dentes. Ele apanha de lutador coreano, eu sou nocauteado pelos jabs das palavras.
Se alguém for ao Google e observar as fotos que surgem embaralhadas na mesma pesquisa de nome pode até ter uma visão deturpada das coisas. O lutador, músculos saltando para fora de todos os omoplatas, aparece às vezes ensanguentado, nocauteado em decúbito dorsal no centro da jaula, com um sujeito metendo-lhe um pontapé no meio dos cornos. No quadro ao lado, franzino, o jornalista surge sentado numa mesa, autografa um livro ou segura um microfone. Parece ter tido mais sorte, protegido de qualquer possibilidade de um soco nos rins, como é cotidianamente banal no mundo do xará. Ledo e ivo engano. A vida de quem escreve, este imenso octógono de letrinhas ensaboadas, sempre escorregando na direção de um outro autor, tem um repertório próprio de golpes — e eles também doem.
O lutador de ultimate fighting Joaquim Ferreira já subiu ao ringue 24 vezes, perdeu oito lutas, vítima e autor de estrangulamentos, cotoveladas no queixo, chaves de braço e pontapés no baço. É um repertório pequeno de golpes diante dos que Joaquim Ferreira, o escritor, enfrenta em seu ofício. É uma pernada da crase, um jab do que-que-que das orações subordinadas. Só os lutadores mais superficiais se deixam levar pelas aparências e desdenham, risinhos de muxoxo por trás dos protetores dentais, de quem tenta comparar os atos de subir ao ringue com o de abrir a tampa do computador. Não sabem a dor e o ridículo de se tropeçar numa vírgula que, mal colocada, paralelepípedo soez, deixa o verbo separado para sempre do sujeito.
Enfim, saibam todos que esta declaração virem tratar-se de lutadores com o mesmo nome, mas um foge do mata-leão e o outro do gerundismo, da redundância e dos erros de concordância. Faça-se pública esta diferença de pessoas e, outrossim, reconheçam-se como idênticas as dificuldades com que realizam seus trabalhos — ou ninguém é capaz de perceber a semelhança entre encaixar um uppercut de direita no queixo do oponente e um outrossim inesperado no meio da frase.
Não sou o que bate nos outros. Bato nas teclas e, vice-versa, apanho delas. Perde-se aqui, ganha-se acolá, e a vida segue. Um é humilhado pelo rabo de arraia, o outro, por um cacófato obsceno. Todos iguais, parrudos ou peso pena, nesta imensa noite terráquea. O Joaquim Ferreira que há tantos anos vai para o corpo-a-corpo com as palavras gosta da definição do ato de escrever, ouvida certa vez de um escritor cujo nome ele já esqueceu, tantos têm sido os catiripapos sofridos por sua memória.
Escrever seria espremer o canto esquerdo da testa contra o canto direito da mesma, provocando aquele cenho franzido tão presente nas imagens do JF escritor no Google. Fique assim por alguns instantes ou horas, encarando a tela do computador como se fosse aquela disputa para ver quem pisca primeiro. Quando o sangue começa a escorrer pelo canal divisor das testas, aí sim, prepare as mãos. É o sinal de que brotou a ideia e se faz mister, de preferência sem o emprego desta palavra, começar a escrever.
Há muito derramamento de sangue para se conseguir realizar bem qualquer trabalho e, se eu fosse o Joaquim Ferreira lutador, na hora de subir ao ringue eu deixaria isso bem claro. Passaria essa mensagem de alívio para os jovens, de que a vida é esforço, e escreveria nas costas do roupão, no lugar daqueles tigres costumeiros, a frase “Não é fácil pra ninguém”. Depois tentaria fugir dos golpes do adversário do mesmo jeito que o Joaquim Ferreira cronista tenta escapar das vírgulas e deixar o texto sem interrupções — mas, como se viu neste parágrafo, nem sempre ele consegue.
Definitivamente, saibam todos pela última vez que se trata do mesmo nome para identificar dois cidadãos diferentes, um com músculo demais, outro, cabeça em demasia, mas ambos dedicados ao bom combate que escolheram. Um Joaquim Ferreira quer “finalizar” o adversário com uma chave de perna; o outro, este que acima assina, quer da vida apenas a felicidade de fechar o texto com uma retumbante chave de ouro.

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