Há muito derramamento de sangue para se conseguir realizar bem qualquer
trabalho e, se eu fosse o Joaquim Ferreira lutador, na hora de subir ao ringue
eu deixaria isso bem claro.
Declaro para os devidos que definitivamente não sou eu, embora carregue
o mesmo Joaquim Ferreira no nome, embora enfrentemos a vida com a mesma
disposição para dar e levar porradas, eu digo mais uma vez que não sou eu o
lutador de MMA, um outro Joaquim Ferreira que nos octógonos internacionais
também atende pelo apelido de Mamute.Viemos ao mundo com o mesmo nome e
sobrenome, mas enfrentamos a vida em ringues diferentes. Suamos. Pomos a cara à
tapa. Às vezes ele encaixa um golpe por baixo da guarda adversária. De vez em
quando eu tenho uma ideia. O resto é a pancadaria comum aos que existem. Dedo
no olho, chute na linha abaixo da cintura. Os inimigos mostram os dentes. Ele
apanha de lutador coreano, eu sou nocauteado pelos jabs das palavras.
Se alguém for ao Google e observar as fotos que surgem embaralhadas na
mesma pesquisa de nome pode até ter uma visão deturpada das coisas. O lutador,
músculos saltando para fora de todos os omoplatas, aparece às vezes
ensanguentado, nocauteado em decúbito dorsal no centro da jaula, com um sujeito
metendo-lhe um pontapé no meio dos cornos. No quadro ao lado, franzino, o
jornalista surge sentado numa mesa, autografa um livro ou segura um microfone.
Parece ter tido mais sorte, protegido de qualquer possibilidade de um soco nos
rins, como é cotidianamente banal no mundo do xará. Ledo e ivo engano. A vida
de quem escreve, este imenso octógono de letrinhas ensaboadas, sempre escorregando
na direção de um outro autor, tem um repertório próprio de golpes — e eles
também doem.
O lutador de ultimate fighting Joaquim Ferreira já subiu ao ringue 24
vezes, perdeu oito lutas, vítima e autor de estrangulamentos, cotoveladas no
queixo, chaves de braço e pontapés no baço. É um repertório pequeno de golpes
diante dos que Joaquim Ferreira, o escritor, enfrenta em seu ofício. É uma
pernada da crase, um jab do que-que-que das orações subordinadas. Só os
lutadores mais superficiais se deixam levar pelas aparências e desdenham,
risinhos de muxoxo por trás dos protetores dentais, de quem tenta comparar os
atos de subir ao ringue com o de abrir a tampa do computador. Não sabem a dor e
o ridículo de se tropeçar numa vírgula que, mal colocada, paralelepípedo soez,
deixa o verbo separado para sempre do sujeito.
Enfim, saibam todos que esta declaração virem tratar-se de lutadores com
o mesmo nome, mas um foge do mata-leão e o outro do gerundismo, da redundância
e dos erros de concordância. Faça-se pública esta diferença de pessoas e,
outrossim, reconheçam-se como idênticas as dificuldades com que realizam seus
trabalhos — ou ninguém é capaz de perceber a semelhança entre encaixar
um uppercut de direita no queixo do oponente e um outrossim inesperado
no meio da frase.
Não sou o que bate nos outros. Bato nas teclas e, vice-versa, apanho
delas. Perde-se aqui, ganha-se acolá, e a vida segue. Um é humilhado pelo rabo
de arraia, o outro, por um cacófato obsceno. Todos iguais, parrudos ou peso
pena, nesta imensa noite terráquea. O Joaquim Ferreira que há tantos anos vai
para o corpo-a-corpo com as palavras gosta da definição do ato de escrever,
ouvida certa vez de um escritor cujo nome ele já esqueceu, tantos têm sido os
catiripapos sofridos por sua memória.
Escrever seria espremer o canto esquerdo da testa contra o canto direito
da mesma, provocando aquele cenho franzido tão presente nas imagens do JF
escritor no Google. Fique assim por alguns instantes ou horas, encarando a tela
do computador como se fosse aquela disputa para ver quem pisca primeiro. Quando
o sangue começa a escorrer pelo canal divisor das testas, aí sim, prepare as
mãos. É o sinal de que brotou a ideia e se faz mister, de preferência sem o
emprego desta palavra, começar a escrever.
Há muito derramamento de sangue para se conseguir realizar bem qualquer
trabalho e, se eu fosse o Joaquim Ferreira lutador, na hora de subir ao ringue
eu deixaria isso bem claro. Passaria essa mensagem de alívio para os jovens, de
que a vida é esforço, e escreveria nas costas do roupão, no lugar daqueles
tigres costumeiros, a frase “Não é fácil pra ninguém”. Depois tentaria fugir
dos golpes do adversário do mesmo jeito que o Joaquim Ferreira cronista tenta
escapar das vírgulas e deixar o texto sem interrupções — mas, como se viu neste
parágrafo, nem sempre ele consegue.
Definitivamente, saibam todos pela última vez que se trata do mesmo nome
para identificar dois cidadãos diferentes, um com músculo demais, outro, cabeça
em demasia, mas ambos dedicados ao bom combate que escolheram. Um Joaquim
Ferreira quer “finalizar” o adversário com uma chave de perna; o outro, este
que acima assina, quer da vida apenas a felicidade de fechar o texto com uma
retumbante chave de ouro.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/dois-lutadores-11691726#ixzz2wbK8tSSI
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