Lepo-lepo carioca (10/03/2014)


O carnaval das ruas do Rio ficou com forte marca de evento de classe média. Virou rave, a estranha festa onde ninguém canta

Esta é a cidade de Nei Lopes, Anitta, Marcos Valle, Naldo e Lulu Santos, gente sempre capaz de abrir o piano, afinar o tamborim ou estartar o computador e dali tirar melodias tão empolgantes que logo em seguida milhares estariam levantando a mão, pulando e cantando num carnaval inesquecível.
Esta é a cidade!
No entanto, no todavia e no porém, o bloco das adversativas, eis-nos aqui mergulhados numa saudade sem explicação, repetindo a todo ano marchinhas que, uma década atrás, ajudaram a trazer de volta os foliões às ruas, mas hoje não fazem mais sentido. Soam tristes, têm um jeito de falta de papo.
Eis-nos aqui olhando com inveja a multidão baiana que a cada ano inventa uma brincadeira musical para se divertir, segurar o tchan e, recentemente, arrochar. Quase tudo lixo, claro, como o tal do “Lepo lepo”, mas cumprem sua função. São ritmos construídos com técnica por profissionais da festa, geralmente já empacotados com uma coreografia na medida e nada mais para atualizar a sacanagem e instaurar o seja-o-que-Deus-quiser carnavalesco.
Braguinha era melhor, sem dúvida, mas onde estão os novos Braguinhas do Rio?
Chega de saudade, querido folião carioca, e vamos deixar de lado esta jardineira que está tão triste, coitada, cansada de ficar há tantos anos pulando de um lado para o outro sem descanso, de boca em boca, todo mundo passando a mão. Já deu, não quer dar mais. Respeitar-lhe-emos as mesóclises d’antanho, as carnes fatigadas de agora e, tchau, vamos investir em outras.
Nada contra as balzaquianas, as chiquitas bacanas e as castas Susanas do Posto Seis, senhoras ainda capazes de darem algum caldo numa festa tão sem preconceito. Mas, convenhamos, são negas de cabelo duro, garotas que foram gostosuras em blocos já passados. Elas passaram o rodo geral, vamos passá-las adiante. Sem maldade. Faz parte da cruel filosofia que move a comunicação entre os seres humanos: o mundo gira e a Lusitana roda. Foram existencialistas, ainda com algum tesão, mas, desculpem, devem se juntar aos confetes, pedacinhos coloridos de saudade, no grande museu do carnaval carioca.
É preciso dar um lepo-lepo musical nos blocos cariocas antes que eles se confirmem como uma imensa rave de fantasiados, todos tristemente agarrados em suas latinhas de cerveja.
Eu acho que já puxei esse bloco outrora, mas aprendi com Nelson Rodrigues a tratar a pires de leite a sede das minhas obsessões. Persigo, da mesma maneira como ele perseguia as cunhadas, as minhas ideias fixas pelos corredores da grande pensão da memória. De vez em quando, exibo-as em público com a empolgação de uma primeira vez. Vivemos bem.
Repito, acho que já cantei essa pedra, não tenho certeza. As garrafinhas metálicas de lança-perfume Rodoro, estocadas desde o carnaval de 1958 e usadas só na semana passada, começam a dar sinais de que o prazo de validade vencera. Junte-se o bode da prise ao cheiro do lixo nas ruas, e isso tudo tem me deixado tipo assim nauseabundo, repetitivo como uma escola de samba na Sapucaí.
A música da viga enorme, que tiraram da Perimetral e enfiaram não se sabe onde, foi uma boa sacada. Vencedora do concurso da Fundição Progresso, oferecia malícia e sonoridade para que, na rua, o folião apimentasse a festa e mudasse o disco antigo das marchinhas, cantasse outra coisa. Zero. Ninguém botou a viga na boca de ninguém — e mais uma vez o carnaval carioca, com suas impressionantes multidões, foi um desfile de trios elétricos cantando música dos Beatles, o repertório da Preta Gil e a lamúria de que, ala-la-ô-ô-ô, ninguém aguenta mais o calor que assola este Saara da falta de imaginação.
No Boitatá, a multidão só delirou em uníssono no grito cadenciado de “Não vai ter Copa!”.
O grupo Ocupa Carnaval reescreveu as marchinhas, injetou-lhe noticiário e transformou o “Quem não chora não mama” em “Segura, meu bem, a pimenta, lugar quente é na caçamba, da polícia truculenta”. Ninguém achou graça (“ei, você aí, me dá um vinagre aí”), e o silêncio persistiu.
O funk das comunidades, gênero que empolga tanto a Rocinha como o Jardim Pernambuco, podia quebrar um galho e ocupar seus mestres com a tarefa de atualizar a música de carnaval carioca. Suas letras em geral não passam de meia dúzia de versos, apelam para o duplo sentido tão ao gosto das ruas e costumam também vir acompanhadas de uma dança sugestiva para o congraçamento das espécies. É, basicamente, a receita da festa. Divertem, são modernas, têm a cara do Rio. A nova marchinha, que não deixa ninguém ficar parado, é este som de preto, pobre e favelado — mas, infelizmente, e isso já é outra história, o carnaval das ruas ficou com forte marca de evento de classe média. Virou rave, a estranha festa onde ninguém canta. Por que não chamar as cachorras e os tigrões que nos são inerentes, e armar um baile de comunidade?

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