O cronista andarilho,
agora de saudosa memória, dizia não haver melhor jeito e lugar para se entender
a cidade do que bater perna descompromissadamente
Morreu na
semana passada, atropelado pela multidão que vinha na direção oposta, o último
cronista andarilho. Ele insistia em fazer como seus antepassados, João do Rio,
Lima Barreto, Benjamim Costallat, Antônio Maria, Carlinhos Oliveira, e flanava
em busca de assuntos. Descanse em paz, pobre coitado.
O
cronista andarilho estava na calçada par da Avenida Rio Branco, em frente à
Galeria dos Empregados no Comércio, às 13h15m de quarta-feira, quando foi
abalroado por um pelotão de transeuntes que marchava apressado no contrafluxo.
Caiu, bateu com a cabeça num fradinho. Morreu constrangido por estar
atrapalhando o tráfego de pedestres, categoria à qual sempre se orgulhou de
pertencer.
A perícia
encontrou em seu bolso um caderno com a anotação “escrever sobre as mulheres
executivas que caminham de salto alto sobre as pedras portuguesas do Centro, o
que lhes aumenta ainda mais a sensualidade do rebolado”. O documento, entregue
ao museu da Associação Brasileira de Imprensa, já está numa vitrine de
relíquias cariocas.
O
cronista que ora se pranteia era um nostálgico das calçadas e tinha como livro
de cabeceira “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Nele, Joaquim Manuel
de Macedo descreve uma caminhada pela Rua do Ouvidor como um dos grandes
prazeres da vida. No apartamento do cronista, de quem no momento se faz este
funéreo, foi encontrada também a gravura de J. Carlos em que um grupo de
almofadinhas observa, deslumbrado, a passagem de uma melindrosa de vestido
curto e perna grossa pela Avenida Central dos anos 1920.
As
calçadas inspiravam o morto. Fez dezenas de crônicas sobre a poesia do flanar
sem rumo, às vezes lambendo uma casquinha de sorvete. Numa delas chegou a falar
da perda de tempo que era subir até o Corcovado para admirar o Rio. O cronista
andarilho, agora de saudosa memória, dizia não haver melhor jeito e lugar para
se entender a cidade do que bater perna descompromissadamente, mas em passos
mais curtos do que essa palavra imensa, pelas calçadas.
Ele ia
assim como quem não quer nada, na terapia gratuita de atravessar de um lado
para o outro e não estar focado em nada — enfim, na exata contramão do que
recomenda o odioso estresse moderno que o atropelou próximo ao turbilhão da
Galeria.
O
cronista andarilho gostava de ouvir os torcedores discutindo futebol na banca
do botafoguense Tolito, na esquina com a Sete de Setembro. Também podia rir da
pregação moralista do profeta Gentileza no Largo da Carioca, ou dar uma parada
no Cineac Trianon, na Rio Branco 181, e avaliar as fotos das strippers que
naquele momento estariam tirando a roupa lá dentro, na tela do cinema.
A vida
era o que lhe ia pelas calçadas do Rio, um espaço historicamente sem entraves
para se analisar como caminhava a Humanidade. O cronista andarilho, desde já
saudoso como o frapê de coco do Bar Simpatia, não percebeu o fim das calçadas —
e, na distração habitual, foi vítima da confusão que se estabeleceu sobre elas,
uma combinação criminosa das novas multidões apressadas com fradinho, anotador
do jogo do bicho, bicicleta, burro sem rabo, mesa de botequim, gola de árvore
acimentada, esgoto, banca de jornal, segurança de loja sentado no meio do
caminho e o escambau a quatro.
Calçadas
não há mais. Eram passarelas onde os vizinhos se encontravam, perpetuavam os
hábitos do bairro e tocavam a vida em frente com certa intimidade pública — no
subúrbio chegava-se a colocar as cadeiras para curtir com mais conforto o mundo
que passava. O cronista andarilho acreditava que na calçada pulsava a alma
carioca. Com o caderno sempre à mão, anotava os modismos, os pequenos
acontecimentos. No dia seguinte publicava o que achava ser a história afetiva
da cidade, aquela em que as pessoas se reconhecem, pois são as obreiras.
O homem
gastava sola de sapato. Uma outra inspiração para o seu ofício era o livro “A
arte de caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro”, escrito pelo contista e
pedestre Rubem Fonseca nos anos 1990. Ainda havia calçada suficiente para o
protagonista descer andando das ladeiras do Morro da Conceição, se esgueirar
pelos becos nos fundos da Rua Larga e, sem GPS, chegar à Rua Senador Dantas.
Não há mais.
O
cronista peripatético costumava cruzar na vida real com Rubem Fonseca, os dois
flanando pelas calçadas do Leblon. As meninas do Leblon não olhavam para eles,
não tinha importância. O mestre seguia em aparente calma, enquanto a mente
elucubrava cenas cruéis de sexo e violência para um próximo conto. Mas, como
sabem todos os que têm passado por ali, as calçadas do Leblon também
desapareceram embaixo de tapume do metrô e da multidão trazida pelo shopping
center. O engarrafamento agora é de gente — e foi aí que se deu o passamento do
último cronista andarilho, vítima da absoluta impossibilidade de se caminhar
pelas agressivas calçadas da sua cidade.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/minha-calcada-11894992#ixzz2wbJIWZZp
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