A mulher que passa (14/04/2014)


O que será do homem, acossado pelo desespero das obrigações diárias, que agora é ameaçado criminalmente por olhar em silêncio a mulher desconhecida?

Sim, confesso, olhei com admiração silenciosa mulheres que passavam na mesma calçada onde eu estava. Percebo agora, lendo artigos feministas após a pesquisa do Ipea sobre estupro, que aquilo é quase tão hediondo quanto. Eu pensava estar sendo elogioso. Estava, dizem, no limite do criminoso.
Na mudez dos meus olhos eu me julgava nivelado à emoção poética de Drummond, quando classificou uma delas, caminhando numa calçada de Copacabana, como a visão urbana da aurora boreal em forma de mulher. No êxtase contemplativo, no júbilo estético destas aparições que eu acumulava ao arquivo jamais fatigado das minhas retinas, eu supunha estar reverente. Ledo engano. Eu e Drummond, no revisionismo histórico de hoje, somos tipificados de grosseiros.
Meus olhos só exclamavam “Meu Deus!, Meu Deus!” em sussurros para dentro, como se legendassem, estupefatos, aquele milagroso espetáculo das calçadas. Ninguém jamais soube deles. Dias atrás, no entanto, fui informado pelas feministas de plantão que meu espanto ensimesmado era intimidação pública. Eu avaliava estar sendo súdito na atenção a elas. As pálpebras piscavam, aplaudiam com discrição. Era, insistem as feministas modernas, um pré-estupro.
Temo que nos próximos dias, no afã de livrar a Humanidade da tenebrosa ação de olhar a mulher que passa, seja legislada a necessidade imediata de se levar ao verdugo mais próximo aquele que quebrar o pescoço para observar a mulher que já passou. O odiento pescoço deste indigitado será em seguida separado da cabeça, com a recomendação de que vá ser repugnante assim na eternidade de seus pecados.
Sempre me pareceu instintivo, mas agora leio que esse olhar não passava de deformação machista. Coisa de porco chauvinista. No meu caso, o crime foi potencialmente agravado por um certo tipo de leitura. Os cronistas brasileiros têm um diversificado repertório de assuntos, mas o único comum a todos é a cena da mulher que passa. Ingênuo, filiei-me à quadrilha.
Dez anos atrás — como pude ser tão repugnante! — cheguei ao cúmulo de editar um livro com uma seleção de crônicas de Antônio Maria. Dei-lhe o título de “Benditas sejam as moças”. Na verdade era uma coleção de textos de um homem, por acaso chamado Maria, diante do espetáculo, que ele julgava incomensuravelmente magnífico, da mulher surgindo na contramão da calçada.
Eu fui seduzido pelo texto sentimental dele, me deixei encantar por sua sensibilidade nas palavras, na exposição sem medo da emoção diante daquele acontecimento. Por alguns segundos, aquilo lhe dava a sensação de pacificar os problemas, inventava um sentido à vida. Acompanhei o olhar de Maria, um ato que eu imaginava generoso e protetor sobre a imagem feminina. Sei agora: fomos cúmplices no mesmo despudor. Estávamos na ante-sala de inscrição no “Clube dos Encoxadores do Metrô”.
Vinicius e Tom também incorreram no grave ato ao tornarem histórico o dia em que viram uma mulher na calçada da antiga Rua Montenegro. Foi há 52 anos, antes de o gesto ser passível, como querem as radicais, de reprimenda legal nas varas competentes e da humilhação através da vaia em praça pública.
Tom e Vinicius observaram a tal moça com os corações que consideravam comovidos, mas segundo as mulheres do “Eu não mereço ser estuprada” eram apenas lobos bobos escaneando a presa. A partir daquela cena, eles escreveram “Garota de Ipanema”.
A “que vem e que passa no doce balanço a caminho do mar” virou, junto com a Monalisa do Da Vinci e as banhistas do Renoir, um dos mais lindos momentos da Humanidade. A fim de vivenciar a mesma lírica mirada dos compositores, milhões de estrangeiros pegaram aviões, atravessaram oceanos, enfrentaram os táxis na saída do Galeão. Queriam ter o mesmo deleite dos cariocas.
Todos torpes, vis e lamentáveis.
Sem querer tirar o corpo fora, digo que essa agora tipificada patologia me foi reforçada no caráter pelo culto adolescente aos textos de Rubem Braga, esse desencaminhador de menores. RB manifestava a tese, hoje revoltante, de declarar a benemerência pública e universal da mulher bonita. Ele não queria outros favores além do bem grandioso e tão grátis que representava a visão passageira delas. Observava como caminhavam, analisava-as pelo balanço dos cabelos — e sentia como se recebesse de volta o perdão católico por ter de resto um cotidiano tão insípido.
Não mais. O politicamente correto proibiu.
O que será do homem, acossado pelo desespero das obrigações diárias, que agora também é ameaçado criminalmente por olhar em silêncio a mulher desconhecida, aquela a quem jamais viu e nunca mais verá? Era um flash de poesia que ele filtrava nas calçadas selvagens, no pegapracapá das aflições modernas. Dava sentido, esperança e sonho ao nosso existir chinfrim.
Eu, réu confesso, peço a todas que se apiedem do meu cândido pecado — mas qual o sentido de a vida passar e se olhar para o outro lado?


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