Oração ao padre Anchieta




Morre-se aos poucos no engarrafamento, na firma autenticada em duas vias, na reunião de condomínio e no sorriso amarelo do Roberto anunciando a carne

Meu querido São José de Anchieta, desculpe-me a artimanha pagã de lhe escrever tão cedo, mal o senhor se instalou no trono de novo santo.
Faço-o movido pela esperança cariocamente esperta de ser o primeiro da fila, de não precisar negociar com os cambistas que amanhã certamente lhe estarão à porta. Imagino assim encontrar ainda vazia a caixa de “Entrada” que os santos põem sobre a mesa de trabalho, no grande escritório azul do céu, e ter mais chances de conseguir seu divino carimbo “Execute-se” sobre meus pedidos. Alguns são terrenos demais, cotidianamente fugazes, mas, perdão, falta-nos a dimensão divina. Faltam-nos evangelizadores como os do seu tempo. Corremos atrás, nada além.
O senhor escreveu o nome de Deus nas areias do litoral fluminense, e eu achei que minhas aflições, por mais comezinhas e egoístas, teriam repercussão em seus ouvidos ibero-brasileiros. Somos carentes de patrícios celestiais. Bons de bola, bons de top models — mas aqui não nascem santos.
Por isso, desculpe o aluguel de minhas preces interesseiras. Perdoe-me também o pragmatismo de enviá-las com cópias em carbono para Madre Paulina e Frei Galvão, os dois brasileiros daí, mas certamente sobrecarregados de súplicas num ano de Copa e eleição.
A propósito, Santo Anchieta, proteja-nos, com o frescor púrpuro de sua canonização recente, desta possibilidade malsã. Em outubro, se outubro houver, escolheremos entre o venal, o corrupto, o preguiçoso e aquele de quem nunca se ouviu falar, mas temos motivos para do futuro já desconfiar. Ilumine a auréola de um deles, deixe o guardanapo permanecer sobre a cabeça dos demais — e entenderemos seu santo sinal na hora de apertar o botão na urna.
Proteja-nos, com a força dos santos novos, das bicicletas na calçada. A salvo delas, não nos deixe tropeçar nas pedrinhas portuguesas de todos os dias.
No seu tempo era mais fácil, meu santo. Havia os animais das florestas, os índios desconfiados e os franceses atirando da entrada da baía. Aos ouvidos de todos, as suas preces chegaram, suavizaram os espíritos, e fez-se a paz no caminhar dos jesuítas que construíram esta grande nação de uma só língua.
O homem moderno é mais vulnerável. Não sabe de onde lhe vêm os inimigos. Por isso, meu bom santo, peço-lhe nesta prece apressada, já na sua primeira semana de mandato, uma proteção holística, ampla, geral e irrestrita. O senhor se lembra do jogo do bicho? Pois então. Cerque-nos da graça divina pelos sete lados.
Livre-nos do mal evidente, do bem fingido, e de tudo o que houver de dúbio entre o rosto escondido do black bloc e a cara de pau do Bolsonaro. Vá ao Facebook. Expulse deste novo templo os que publicam pseudoeventos na nossa linha do tempo.
Que seu imenso manto de bondade nos acuda tanto dos motoristas falando no celular quanto do ar refrigerado abaixo de zero nos cinemas.
Que seu amor canonizado leve meus ouvidos cansados para longe das pessoas que falam “sopinha”, “saladinha”, “peixinho”, e traga para perto da nossa mesa o garçom, sempre conversando com o colega lá no outro lado do salão.
Ensine-nos a praticar, como o senhor fez diante dos índios selvagens, a técnica de se levitar altaneiro sobre os problemas tão pequenos que diuturnamente tanto nos apoquentam. Mantenha em outro guichê do banco o boy do escritório com 500 contas de luz para pagar. Mantenha-nos espiritualizados, cheios de bons sentimentos para com todos, inclusive o rapaz da NET que por três vezes marcou passar na parte da tarde. Não se esqueça dos nossos bolsos. Mantenha-os longe dos preços dos restaurantes e também dos conselheiros que decidem as compras de refinarias pela Petrobras.
Há uma longa lista de milagres a serem pedidos, e já que estou clamando a um santo poeta, adorador do Deus justo e das palavras corretas, rogo para longe de minhas retinas fatigadas os textos em que alguma coisa “remete” a outra. Afaste de mim os que não entram mais numa rua. Eles agora “acessam”.
No século XVI de sua vida terrena, havia a areia movediça ou a peçonha da cascavel. O padre disso tudo sabia se defender, armado ainda do escudo formado pelos anjos. Hoje os inimigos são menos óbvios. As dores estão camufladas. Morre-se aos poucos no engarrafamento, na firma autenticada em duas vias, na reunião de condomínio e no sorriso amarelo do Roberto anunciando a carne do boi.
A selva continua em nós, e eu peço a sua luz positiva sobre estes eternos índios, agora vestindo Forever 21. Afaste de minhas canelas as pranchas dos skatistas no calçadão de domingo. Levante seu olhar catequizador sobre a cabeça dos brasileiros. Ajude principalmente a bela Patrícia Poeta. Pacifique o que lhe vai de alvoroço nas melenas e inaugure sua santa administração com este primeiro milagre. Seremos para sempre gratos. Faça-a encontrar um penteado que, ao ligar a televisão, não nos espante mais do que as falcatruas dos políticos por ela denunciados.
Temos fé.


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