À flor da pele (12/05/2014)

Chegou a hora nacional de encontrar os culpados por um país que não decola, e fazer a sua justiça particular

O queijo que estava aqui, já se sabe, a inflação e a corrupção comeram, mas e o homem cordial, aquele de que nos orgulhávamos de ver nascer aos montes no criadouro das mitologias nacionais? Onde foi parar o gajo afável desta patriamada gentil?
Onde andará, neste festival de beques botocudos, o zagueiro educado que ao fim da temporada era agraciado com o Troféu Belfort Duarte, uma jabuticaba de parabéns que só existia no futebol brasileiro? Identificava a nossa elegância em ir na bola com técnica esportiva e premiava o jogador sem um carrinho por trás no currículo.
Por onde andarão a noivinha da Pavuna, a namoradinha do Brasil, a velhinha de Taubaté, o Jeremias, o Bom, o Anjinho da Mônica, os descendentes do Profeta Gentileza e todos aqueles personagens da galeria gente boa que nos formataram o caráter e faziam, no humorístico da TV, a americana Kate Lyra se derreter toda e dizer “brasileiro é tão bonzinho”?
O pau está comendo na casa do Noca, a jiripoca está piando, e ao brasileiro de hoje, dos clichês antigos, serve apenas aquele de ser mau que nem o pica-pau. Puxa-se a peixeira, roda-se a baiana, buzina-se bem alto para que todos saibam. Não estamos gostando.
Semana passada dois personagens dessa histeria coletiva, um país com os nervos à flor da pele, deram provas aqui na esquina de casa que não cabe mais, para terminar de exercitar os bordões linguísticos, puxar do coldre o apaziguador “calma, que o Brasil é nosso”.
O Brasil está com raiva do Brasil, fuleco da vida, disposto a tacar fogo em toda a sua frota de ônibus e a jogar pedra ao primeiro “pega ladrão” que for gritado. Somos todos suspeitos. Tem gente em praça pública rasgando álbum de figurinha para proclamar o fim das expectativas ingênuas. A classe C cresceu, as UPPs espanaram o tráfico, o mensalão está preso — mas é pouco, e o mau humor atira, do quinto andar, um saquinho de urina em cima disso tudo que está aí.
Pergunte ao João — outro sujeito generoso, que nos tirava as dúvidas num programa da Rádio JB — de onde vem esse baião rancoroso, em que momento o tal gigante acordou e se sentiu por aqui, ó, um pote até aqui de mágoa. O black bloc, o neoliberalismo, a Sheherazade, a Fifa, o Batalhão de Choque, a Forever 21, o Henrique na zaga — tudo muito suspeito.
Mas antes que me caia na cabeça uma privada jogada pela torcida contrária, conto o que vi na esquina.
A velhinha andava com dificuldade pelo supermercado, cheia de pacotes na mão. Premida pelos desconfortos da idade e também pelas longas filas nos caixas do Zona Sul, ela furou a destinada a pessoas carregando menos de dez produtos. A velhinha carregava muitos mais.
No último posto da fila, um sujeito imenso, que em seguida declarar-se-ia, num português menos escorreito, um segurança de banco, começou a discursar. “É assim que se faz um país de gente esperta e safada.” A esperta safada era a velhinha. Ela, por sua vez, contaminada pela irritação geral que une o país, também não botou o galho dentro.
Disse que safado era ele, que fosse àquele lugar. O resto da fila permaneceu em silêncio, todos esperando a vez de gastar seus ódios particulares esculachando a caixa pelos caros e lentos serviços do supermercado.
Quando a velhinha já estava na calçada, o segurança finalizou sua guerra particular. “Quando estiver sendo assaltada na saída do banco não vem pedir ajuda que eu não vou ajudar”. A velhinha esticou-lhe o dedo, na sinalização definitiva de que, aqui ó, ninguém mais leva desaforo para casa.
Pode parecer pouco diante dos linchamentos da mulher em Guarujá e do Renato Aragão na internet, ambos vítimas de boatarias. Mas, definitivamente, ninguém quer saber de inocentes. Chegou a hora nacional de encontrar os culpados por um país que não decola, e fazer a sua justiça particular. Um sujeito quebrou os dentes da mulher que, no Municipal, ao seu lado, tagarelava ao celular — e foi aplaudido.
Dias atrás, escrevi sobre a Copa como evento capaz de alegrias para quem gosta de futebol. Foi o suficiente para a caixa postal se encher de vitupérios sobre ufanismo suburbano. No passado, adorávamos Copa do Mundo. Passamos a detestar.
Tenho a impressão de que se o espírito do escritor austríaco Stefan Zweig, morto em 1942, baixasse num centro mediúnico da Vila da Penha, seria linchado por ter publicado o livro em que chamava o Brasil de “país do futuro”. Ai de quem assoprar alguma frase positiva na arena brasileira de hoje. Eu, se fosse o fantasma de Augusto Comte, arauto do positivismo, morto em 1857, não reencarnaria por aqui. Seria enrolado na bandeira brasileira e queimado junto com ela. Não tinha nada que inspirar no nosso lábaro estrelado a desfaçatez do “Ordem e progresso”. Onde?
Nem o João se arriscaria a responder.


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