Deu Gabo na Penha (28.04/2014)


Antes de ser leitor de jornais, eu gostava deles para fazer “Maria Preta”. Pegava uma página qualquer, de preferência as duplas, maiores, e primeiro juntava a ponta do alto à direita com a ponta de baixo à esquerda. Depois, fazia a mesma operação com as duas outras pontas. Levava a do alto à esquerda para encontrar a de baixo à direita. As quatro pontas ficavam presas por um enroscado que se dava com a mão. A página ganhava o formato de balão – e é aí que o realismo fantástico começava.
Eu colocava fogo (com fósforos da marca Olho, Pinheiro ou Beija-Flor) em todas as pontas daquele parangolé impresso, uma verdadeira escultura de papel, e esperava a mágica se realizar. Aos poucos a página queimava, e azar se o Carequinha tinha dito que quem brincasse com fogo fazia pipi na cama.
De repente, o pacote escuro, inflado pela fumaça da parte de dentro, subia pelos ares da Vila da Penha. A classe C ainda não havia ascendido socialmente para ir à Nova York e comprar brinquedos na FAO Schwarz. Era a brincadeira possível. O balão chegava aos 20 metros de altura. Aos poucos as cinzas iam se soltando e a noite suburbana ganhava novas estrelas.
Lembrei da “Maria Preta” brilhando nos céus do subúrbio quando soube da morte de Gabriel Garcia Marquez. A Vila da Penha foi a minha Macondo.
Não sei se fui seguido por uma multidão de borboletas amarelas, como os personagens de “Cem anos de solidão”, mas tive meus insetos sobrenaturais. Foi uma infância iluminada por vagalumes de todos os volts. As ruas escuras, apagadas pelo eterno abandono municipal, realçavam o pisca-pisca deles.
Eu, moleque sem qualquer consciência ambiental, era consciente apenas de que o sentido da vida devia seguir onde fossem as coxas que a Virginia Lane deixava de fora na sua fantasia de Coelhinho Tonelux. Eu vibrava, sem saber, os últimos momentos das brincadeiras politicamente incorretas.
Prendia dezenas de vagalumes nas caixas de fósforo. Depois, com os outros meninos que se dedicavam à mesma liberdade, abríamos todas as caixas num quarto escuro. Cercados de vagalumes aflitos por todos os lados, e eu soube mais tarde que nesses momentos eles ficam ainda mais luminosos, vivíamos aquele alumbramento coletivo.
Foi antes, bem antes de a classe C comprar passagem para ver neon piscando em Times Square. Os assombros estavam na esquina. O jogador Maneco, do América, morava numa rua próxima e parecia ser o sinal feliz de um suburbano bem sucedido, até que um dia, num dos cômodos da sua casa na Vila Prosperidade, tentou contra a própria vida, com sucesso, tomando um copo de guaraná com formicida. Era o estilo em voga para quem queria desistir de tudo.
Eu, garoto entre muitos, moía vidro na linha do bonde para fazer cerol de pipa e ainda me protegia dos inimigos colocando uma gilete na rabiola. No peito, usava emplastro Sabiá. Na memória, Biotônico Fontoura – e graças a ele, talvez, ainda me lembre que, na falta de cem dias de chuva, como a que inundou a Macondo de Gabo, achamos inevitável o fim do mundo na noite em que o céu avermelhou de uma ponta a outra. Não havia a informação online para dizer do que se tratava. Pensou-se na chegada em grande estilo do Senhor Todo Poderoso, que Julio Louzada todo dia anunciava na “Ave Maria” das 18h na Rádio Tupi. Era a explosão do paiol de Deodoro.
Gabriel Garcia Marques dizia não ter inventado nada, apenas colocou no papel a realidade mágica de sua cidade. No meu bairro, eu vi a menina pedindo que lhe urinassem nos pés para curar uma frieira. Eu estava na missa quando o padre de sotaque alemão, diante do barulho dos fiéis saindo dos seus assentos para acolher a hóstia consagrada no altar, lamentou a algazarra: “Levantou a cavalaria”. Imagino a existência de outras Macondos mais radicais, mas Gabo só um. Qual de nós seria capaz de construir um romance a partir do momento em que conheceu o gelo¿
Dias atrás, voltei à minha Macondo natal. Na casa onde tantas vezes tive rezada a espinhela caída, persiste a família que faz um mix sem preconceito de religiões. Desta vez eu não tinha nada para me queixar e ser rezado, mas confessei um mistério. É uma história real. Há décadas, centenas de pessoas, por algum assopro sobrenatural que eu gostaria de identificar, trocam o meu nome por Francisco. É tão constante que quando chamam Francisco, eu atendo.
A senhora que me fazia o trabalho religioso relutou por uns momentos em resolver o enigma. Achava que daria peso grave à vida de um cronista ligeiro. Diante da minha ansiedade, décadas sendo chamado por outro, ela resolveu esclarecer aquele capítulo do meu realismo fantástico.
“Alguma coisa aconteceu na sua infância e o seu destino mudou”, disse. “Era para ser você, e não um argentino, o Papa Francisco”.

Ri suave, sem mostrar descrença. Não disse, é claro, mas meu Papa é outro. Eu preferia ser Gabo.

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