Minhas figurinhas (19/05/2014)



Que me perdoem os eternos idiotas da objetividade, aqueles que querem da vida apenas a sensação de colocar a qualquer custo as mãos sujas de sangue na taça da vitória – que me perdoem esses chatos com a lapela repleta de comendas e honras ao mérito. Estilo é fundamental. O goleiro Pompeia tinha.
Não adianta correr a todos esses livros de futebol lançados para faturar a Copa da FIFA e procurar a ficha dele. José Valentim da Silva virou Pompeia porque, quando garoto, adorava desenhar o Popeye. Merecidamente não está nos novos compêndios sabichões. Era apenas razoável, incapaz de dar sono tranquilo à torcida do América na véspera dos grandes jogos entre os anos 1950 e 60.
Ele está aqui porque no meu álbum de figurinhas de futebol entram os melhores jogadores, os artilheiros e os goleiros menos vazados, mas a página que eu gosto mesmo é a das figurinhas dos que, nem todos craques, nem todos capitães, fizeram do jogo uma festa.
            Pompeia, ex-palhaço de circo, foi para a cultura nacional o oposto do João Cabral. Se o poeta pedia para não se perfumar a flor, o goleiro enfeitava suas defesas com um acúmulo de exageros e novas sensações. Eu escalo Pompeia na seleção das grandes memórias pátrias ao lado das saias melindrosas de J. Carlos, das mãos coreografadas da Carmen Miranda e das colunas sinuosas do Niemeyer em Brasília. Todos queriam fazer bonito.
O arquiteto, por exemplo, poderia ter desenhado como os outros e apostado tudo na função, na necessidade de o concreto armado segurar os palácios. A casa ficaria em pé e pronto. Cumpriria o serviço de não deixar a chuva cair dentro, ser forte o suficiente para proteger os Três Porquinhos do sopro do Lobo Mau. Seria, no entanto, mais uma contribuição ao já sobrecarregado tédio que sufoca a Humanidade, apenas um andar mais alto para que em seguida seus moradores o usassem como plataforma e se atirassem de lá.  
Niemeyer e Pompeia faziam diferente. Queriam sair do feijão com arroz, do ramerrame e do burocraticamente protocolar. “O espanto, o espanto e o espanto” era a inscrição que traziam tatuada na omoplata invisível de seus corpos. Partiam dela para cunhar uma marca de vida. Gostavam de dizer, em mesas de simpósios diferentes, que o diabo morava no detalhe – e seguiram reverentes Sua divina seita. Tudo pelo espetacular e bem acabado. O show, a apoteose. O arquiteto e o goleiro sabiam da importância da arte final, da azeitona no dry-martini, da cereja no alto do bolo e do fecho de ouro no soneto.
             Eu me lembrei do Pompeia porque o Brasil vai para a Copa do Mundo sem um goleiro que inspire confiança ou faça sentido com a história do jogo divertido que se costumava praticar aqui. Gostamos de ganhar, claro, mas a seleção mais querida de todas ainda é aquela de 1982, derrotada na Espanha. Fizemos gols geniais em 1970, mas o que passa a toda hora na televisão é o lance do drible da vaca do Pelé no Mazurkievski, com o zagueiro uruguaio tropeçando no próprio desespero e o Rei jogando a bola para fora. O Pompeia que até hoje joga na minha imaginação é o deste futebol brasileiro. A dedicação ao estilo. Vencer era um detalhe. O importante era a multidão no uníssono alegre e espantoso do “ohhhhhhhh!”.
            Para Pompeia não havia bola simples. Se o atacante chutava no ângulo, lá onde a coruja dorme, ou rasteirinha, aparando a grama, o nosso intrépido goleiro, para a felicidade de todos os garotos que o viram, atirava-se espetacularmente. Era o que se chamava “ponte”. Pompeia voava atrás da bola – nem sempre a pegava, é forçoso admitir – e rendia fotos lindas. O locutor Valdir Amaral, outra figurinha carimbada no álbum de futebol que eu coleciono na memória, rotulou-o de “Constellation”, o avançado avião da época. Pompeia também atendia se o chamavam “Ponte aérea”.
Para a Copa de 2014 escalamos jogadores eficientes, mas quadrados. Apenas um, Neymar, é capaz de reinventar o jogo – e isso diz muito sobre a caretice que nos assola. Com sua tabuada de novos dribles, ele entendeu que o futebol no Brasil é o grande voo da imaginação sobre a mesmice cotidiana. É a figurinha da vez. Quer continuar a reinventar o sonho no futuro dos garotos, da mesma maneira que Gerson com o passe de três dedos e Garrincha com as escapadas pela direita fizeram no meu álbum de vida. 
Eu comecei a me interessar por literatura, cinema, música e todas as outras artes muito depois de ter visto o grande circo que Pompeia armava todo domingo no antigo Maracanã. Deve ter sido por isso. Gosto de quem abusa do estilo, de quem joga para a plateia, faz gol de letra e diz o tempo todo: “olha como eu me divirto fazendo esse troço”. Gosto de quem sai voando além do que exige a cartilha da sua profissão. Gente que, correndo todos os riscos, faz de outro jeito, sempre na certeza de que sem espanto não tem arte – e sem arte não tem graça.

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