Que me perdoem os eternos idiotas
da objetividade, aqueles que querem da vida apenas a sensação de colocar a
qualquer custo as mãos sujas de sangue na taça da vitória – que me perdoem
esses chatos com a lapela repleta de comendas e honras ao mérito. Estilo é
fundamental. O goleiro Pompeia tinha.
Não adianta correr a todos esses
livros de futebol lançados para faturar a Copa da FIFA e procurar a ficha dele.
José Valentim da Silva virou Pompeia porque, quando garoto, adorava desenhar o
Popeye. Merecidamente não está nos novos compêndios sabichões. Era apenas razoável,
incapaz de dar sono tranquilo à torcida do América na véspera dos grandes jogos
entre os anos 1950 e 60.
Ele está aqui porque no meu álbum
de figurinhas de futebol entram os melhores jogadores, os artilheiros e os
goleiros menos vazados, mas a página que eu gosto mesmo é a das figurinhas dos
que, nem todos craques, nem todos capitães, fizeram do jogo uma festa.
Pompeia,
ex-palhaço de circo, foi para a cultura nacional o oposto do João Cabral. Se o
poeta pedia para não se perfumar a flor, o goleiro enfeitava suas defesas com um
acúmulo de exageros e novas sensações. Eu escalo Pompeia na seleção das grandes
memórias pátrias ao lado das saias melindrosas de J. Carlos, das mãos coreografadas
da Carmen Miranda e das colunas sinuosas do Niemeyer em Brasília. Todos queriam
fazer bonito.
O arquiteto, por exemplo, poderia
ter desenhado como os outros e apostado tudo na função, na necessidade de o
concreto armado segurar os palácios. A casa ficaria em pé e pronto. Cumpriria o
serviço de não deixar a chuva cair dentro, ser forte o suficiente para proteger
os Três Porquinhos do sopro do Lobo Mau. Seria, no entanto, mais uma contribuição
ao já sobrecarregado tédio que sufoca a Humanidade, apenas um andar mais alto
para que em seguida seus moradores o usassem como plataforma e se atirassem de
lá.
Niemeyer e Pompeia faziam
diferente. Queriam sair do feijão com arroz, do ramerrame e do burocraticamente
protocolar. “O espanto, o espanto e o espanto” era a inscrição que traziam
tatuada na omoplata invisível de seus corpos. Partiam dela para cunhar uma
marca de vida. Gostavam de dizer, em mesas de simpósios diferentes, que o diabo
morava no detalhe – e seguiram reverentes Sua divina seita. Tudo pelo
espetacular e bem acabado. O show, a apoteose. O arquiteto e o goleiro sabiam
da importância da arte final, da azeitona no dry-martini, da cereja no alto do
bolo e do fecho de ouro no soneto.
Eu me lembrei do Pompeia porque o Brasil vai
para a Copa do Mundo sem um goleiro que inspire confiança ou faça sentido com a
história do jogo divertido que se costumava praticar aqui. Gostamos de ganhar,
claro, mas a seleção mais querida de todas ainda é aquela de 1982, derrotada na
Espanha. Fizemos gols geniais em 1970, mas o que passa a toda hora na televisão
é o lance do drible da vaca do Pelé no Mazurkievski, com o zagueiro uruguaio
tropeçando no próprio desespero e o Rei jogando a bola para fora. O Pompeia que
até hoje joga na minha imaginação é o deste futebol brasileiro. A dedicação ao
estilo. Vencer era um detalhe. O importante era a multidão no uníssono alegre e
espantoso do “ohhhhhhhh!”.
Para Pompeia
não havia bola simples. Se o atacante chutava no ângulo, lá onde a coruja
dorme, ou rasteirinha, aparando a grama, o nosso intrépido goleiro, para a
felicidade de todos os garotos que o viram, atirava-se espetacularmente. Era o
que se chamava “ponte”. Pompeia voava atrás da bola – nem sempre a pegava, é
forçoso admitir – e rendia fotos lindas. O locutor Valdir Amaral, outra
figurinha carimbada no álbum de futebol que eu coleciono na memória, rotulou-o
de “Constellation”, o avançado avião da época. Pompeia também atendia se o
chamavam “Ponte aérea”.
Para a Copa de 2014 escalamos
jogadores eficientes, mas quadrados. Apenas um, Neymar, é capaz de reinventar o
jogo – e isso diz muito sobre a caretice que nos assola. Com sua tabuada de
novos dribles, ele entendeu que o futebol no Brasil é o grande voo da
imaginação sobre a mesmice cotidiana. É a figurinha da vez. Quer continuar a
reinventar o sonho no futuro dos garotos, da mesma maneira que Gerson com o
passe de três dedos e Garrincha com as escapadas pela direita fizeram no meu
álbum de vida.
Eu comecei a me interessar por
literatura, cinema, música e todas as outras artes muito depois de ter visto o
grande circo que Pompeia armava todo domingo no antigo Maracanã. Deve ter sido
por isso. Gosto de quem abusa do estilo, de quem joga para a plateia, faz gol
de letra e diz o tempo todo: “olha como eu me divirto fazendo esse troço”. Gosto
de quem sai voando além do que exige a cartilha da sua profissão. Gente que,
correndo todos os riscos, faz de outro jeito, sempre na certeza de que sem
espanto não tem arte – e sem arte não tem graça.
Comentários
Postar um comentário