O bonequinho ri de quê? (26/05/2014)

Há um excesso de vida real na cidade, um mau humor generalizado

De que ri o bonequinho símbolo dos 450 anos do Rio, se eu acabei de levar duas horas entre a Lapa e o Flamengo pelo Túnel Santa Bárbara?
A solução gráfica do logotipo é engenhosa, capaz de repetir a cruz do quarto centenário e ser desenhada com facilidade pelas crianças nas escolas e pelos grafiteiros nos muros. Parabéns aos designers.
Eu temo, no entanto, que, em breve, alguém, mais uma vez assaltado na esquina de Vinicius com Alberto de Campos, faça justiça com as próprias mãos e coloque uma lágrima caindo dos olhos do bonequinho. Ou outro alguém, mais carioca ainda, recém-saído do Miguel Couto depois de torcer o pé numa calçada esburacada, ocupe a boca aberta do pobre coitado com algo ainda mais raivosamente crítico.
O bonequinho sorridente, apresentado à população numa página inteira de jornal com o título de “Viva a carioquice”, é evidentemente um cidadão de sonho. Não existe. Ninguém neste quarteirão olha para ele e se vê refletido em tamanha felicidade gráfica.
Na feira de preços escorchantes da General Osório, um feirante esnobe oferece o maracujá como fruto da paixão. O bonequinho 450 é fruto da imaginação.
Trata-se do projeto Carioquinha do Futuro, alguém que mais adiante talvez se apresente de carne e osso quando a Transcarioca estiver pronta, o metrô cortando toda a cidade, as armas silenciadas e as escolas ensinando em tempo integral. O bonequinho de hoje não nos é vizinho. É apenas um pensamento positivo.
Pode ser que quando chegar 2015, data exata das comemorações de quatro séculos e meio de carioquice, reclame-se de ele não estar mais feliz ainda, com a boca escancarada num sorriso até a orelha. Por enquanto, o bonequinho é como qualquer um desses candidatos ao governo do Rio nas próximas eleições. Não nos representa.
Ele é simpático, mas alienígena.
Rindo de quê, se o estresse urbano ficou insuportável? Das greves? Dos preços surreais? Das multidões que tomaram conta dos poucos bairros capazes de apresentar serviços e condições de vida decentes? Das pessoas que continuam usando a areia da praia como lixeira?
O bonequinho dá a impressão de rir do nosso estupor, mas eu gosto de pensar positivo. Não é obra de um artista do hiper-realismo, obrigado a reproduzir a verdadeira cara do carioca hoje. O bonequinho 450 é delírio. É, para empregar uma expressão de Copa do Mundo, uma torcida fervorosa para que assim sejamos no futuro — claro, se não formos atropelados pela bicicleta, esta senhora enfurecida que, temerosa de ser abalroada pelo ônibus assassino no meio da rua, vem para cima da calçada se vingar no pedestre.
Neste momento, engarrafado dentro do Túnel Rebouças, eu não vejo motivo para a euforia do desenho. A não ser, claro, que o boneco esteja sentado na pedra do Arpoador, de frente para o pôr do sol no Dois Irmãos — e mesmo assim eu recomendaria, bonequinho previdente que sou, que ele mantenha bem guardado o celular.
Esta é uma cidade — para continuar falando da mesma família de personagens — a quem o outro bonequinho, o do GLOBO, sempre aplaudiu de pé. Com razão. Isso aqui é coisa de cinema. Onde mais encontrar esse recorte de montanha ao fundo de praias, lagoas e florestas? Onde mais essa convivência das memórias de um império europeu com a feijoada dos escravos, o rebolado livre das africanas com a aspiração a ser referência mundial dos modismos? A bossa nova, a folha seca e a apoteose — tudo coisa nossa.
O bonequinho dos 450 anos aparece num momento pouco cinematográfico. Há um excesso de vida real na cidade, um mau humor generalizado. Ninguém dá um passinho à frente, facilita o troco ou fala com o motorista apenas o estritamente necessário. Há muito ninguém grita “Ei, amigo, a porta tá aberta”.
Sete anos atrás, no anúncio dessas festas, o Rio começou a viver a esperança de que a Copa do Mundo, as Olimpíadas, todo esse incrível festival de eventos traria uma melhoria no jeito de a cidade funcionar. Muitos se locupletariam nas tetas das verbas, mas fazia parte. As obras deixariam a mobilidade urbana mais saudável, os serviços mais civilizados e até o turista perceberia isso, pois sairia do Galeão e na porta encontraria uma fila de táxis ordeiramente à espera. A Copa chegou e, do programado, só o desvio de verbas aconteceu. Antes do Neymar, entrou em campo um profundo sentimento de frustração e perda da grande chance.
Que o bonequinho nos desculpe a todos, não é da índole carioca a marra zangada. Mas vai ficar rindo sozinho.


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Comentários

  1. Parabéns Joaquim, pelo excelente texto publicado na edição de hoje do jornal O GLOBO. Eu, como carioca, estou sufocado, tenso, perdi meu humor faz tempo, e não vejo o que comemorar nestes 450 anos que se aproximam. Uma pena, as pessoas se contentarem com paisagens do Arpoador, da enseada de Botafogo, etc.... Não quero um Rio apenas contemplativo.

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