Nelson Rodrigues, o profeta
tricolor, escrevia neste jornal – e, antes que o leitor respire nostálgico com
a constatação de que não se faz mais cronista como antigamente, eu digo de
chofre a razão de o criador do Sobrenatural de Almeida me vir à cabeça em plena
Copa de 2014.
Ele não
entenderia, como eu não entendo, por que os locutores na televisão, em meio à
leitura compenetrada do que vai pelo mundo, abrem imediatamente um sorriso
infantil quando passam às notícias de futebol. Será que acham o futebol um show
divertido?
Para Nelson Rodrigues qualquer
pelada tinha dramaticidade shakespeariana – e o morto-vivo Oscar, que no Brasil
e Croácia emergiu das vaias para a consagração, está aí para confirmá-lo.
Nelson desprezaria qualquer avaliação
técnica para elogiar a atuação do falso ponta-direita. Depositaria todo o
sucesso no fato de ele ter sido ungido pela paternidade da véspera. Oscar poderia
ter jogado descalço – e eu aqui imito o cronista das chuteiras imortais – e
teria sido vencedor.
O futebol nos textos de Nelson
Rodrigues era a certeza apaixonada de que o homem não procura no jogo da bola a
diversão lúdica – mas a complexidade da existência. Não é a bola. É a tragédia,
o horror, o sofrimento e a compaixão. A vitória consagra, mas não passa de banalidade
happy-end de cinema americano. Logo será esquecida. Nelson preferia os
estertores da ópera, o punhal escondido na bainha e a sua versão futebolística
na traição soez do montinho artilheiro. As partidas históricas, vide o Maracanazo,
são as que doem na carne da alma.
Às segundas feiras, ele tinha
como mote a escolha do “Personagem da Semana”, o herói que retirava dos embates
da última rodada. Não lhe importava o 4-2-4, mas a paixão empregada para se
aplicar um plano tático. Um perna-de-pau lhe era tão precioso quanto o
artilheiro – e Nelson certamente não desprezaria os olhos esbugalhados de
Marcelo, buscando colocar no rosto um esgar qualquer de inocência ao trair a
pátria e marcar contra.
Nelson não tratava o futebol com
as piadinhas adolescentes de que as partidas são vítimas hoje. “Envelheçam”,
diria aos que folheiam o futebol como um álbum de figurinhas e não o último capítulo
de “Os Irmãos Karamazov”.
Ele ia ao mesmo estádio que o
botafoguense João Saldanha, craque também da crônica esportiva, mas via outro
jogo. Depois, à meia-noite, na “Grande Resenha Facit” da TV Globo, enfrentava o
rubro-negro José Maria Scassa dizendo que era assim mesmo. Cego em futebol é o que
só vê a bola – e formou milhares de fanáticos por esse maravilhoso encontro de
literatura e futebol.
Foi ele quem chamou o videoteipe
de burro, por não ter a imaginação do olho humano – e tenho certeza que
debocharia do espalhafato das 34 câmeras que a FIFA espalhou pelos estádios da
Copa.
Para que tanta tecnologia se
muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida¿ - ele perguntaria.
Por que tanta reportagem sobre
lesões musculares e nenhuma sobre a dor de cotovelo que acomete o lateral
esquerdo¿
Nelson achava que não se faz
futebol com bons sentimentos, chuteiras vermelhas com cano alto ou sensores
dentro da bola para que ela própria apite o gol ao passar sobre a linha. Alma,
a proteção estarrecedora da sorte e a fermentação de uma úlcera eram elementos
fundamentais numa partida. Antes de se botar a mão na taça, ele exigia as
provações de Jó.
Meu personagem da semana é Nelson
Rodrigues porque, quatro dias depois de todos os replays, ele estaria aqui
narrando um Brasil e Croácia que nenhuma câmera da FIFA pegou. A sua partida
era a melhor de todas, aquela jogada com as bolas de uma imaginação genial.
O futebol não tinha a ver com o
clima parque de diversões infantilizado com que é tratado hoje na TV. Há
piadinhas demais, um clima constrangedor de balada lepo-lepo e irrelevância. O
futebol de Nelson era para adultos. Ele daria a dimensão correta da cotovelada
de Neymar no pescoço do Modric. Diria como ela talvez não fosse apropriada para
um debate da Câmara dos Comuns, em Londres, mas no Itaquerão era outra coisa.
“Se o jogo fosse só a bola, está certo condenar o foul – mas há o ser humano
por trás da bola, e a bola é um reles, ridículo detalhe”.
Ao ouvir Dilma vaiada, Nelson dramatizaria
o pesadelo botando em cena o corcunda de Notre Dame. Ao ver Neymar beijando a
bola na hora do pênalti, lembraria que Gerson, no mesmo momento, costumava
cuspir nela. Era uma cusparada metafísica, um sebo humano no courinho número 5.
Nas suas crônicas, Nelson era o
dono da bola e, como alguns faziam com a borra do café, lia nela as jogadas da
vida. O que ele falaria do juiz japonês? O sujeito que, quatro anos depois de
ter deixado de marcar um pênalti a favor do Brasil na Copa da África do Sul,
atravessa os mares com a obsessão nipônica pela correção moral e tenta se redimir
da condenação bíblica marcando a nosso favor um pênalti que não existiu. Com o
erro crasso, ele assume a culpa perante Deus e perante os homens. Clama pela absolvição
do antigo pecado e comete, numa cena de teatro kabuki, o harakiri profissional
na frente do mundo.
Isso é futebol na veia, pelo
menos o futebol que eu aprendi a jogar com Nelson.
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