É pau, é pedra, é o fim do caminho da Civilização Tóis, aquela que os
guerreiros do condado de Comary inventaram para dominar o planeta futebol e para
todo o sempre ser invencível. Ela exigia de seus súditos o cumprimento em que a
mão direita fazia o poste enquanto o antebraço esquerdo servia de travessão,
formando o T da palavra mágica. “Pelos poderes de Tóis”, gritavam no meio das
rodinhas antes das batalhas – e se julgavam mais motivados.
Ninguém sabia onde queria chegar aquela confraria de homens adolescentes,
sempre caminhando em fila indiana, as mãos nas costas do guerreiro que seguia
na frente. O mundo adulto ria, mas eles vinham de uma civilização na floresta onde
o importante era ser fofo. Foi assim que se conheceram no pátio escolar, meninos
com alegria nas pernas, e assim caminhariam, uma chuteira de cada cor, a barra
da cueca à mostra. Diziam-se uma família.
Os guerreiros de Tóis julgavam-se predestinados pelo sangue vitorioso de
seus antepassados e com poderes suficientes para viver isolados na nova
civilização de orgulho que fundaram. João Gilberto sussurrou e criou a bossa
nova. D. Pedro inventou um país com o “Independência ou morte”. Agora, os canarinhos
tropicais fundaram Tóis, abaixo da fortaleza do Dedo de Deus. A rocha energizava
seus pés, eles acreditavam, ajoelhados contritos no meio do campo.
Durante um mês, estes 23 soldados furaram o nevoeiro da serra onde se
aquartelavam e, como se fossem entidades divinas surgindo em meio às brumas de
Avalon, desciam à várzea para enfrentar os fariseus que ousavam desafiá-los,
eles, os auto-proclamados reis eternos do futebol mundial. Sentiam-se
semideuses, falavam da magia do bigode grosso e da união do grupo. Eram os
valores do mundo Tóis. Zero de conversa sobre futebol, pois já de tudo sabiam.
Os guerreiros de Tóis eram os mais tatuados das guerras, todos rabiscados
com a miríade de possibilidades inventadas para se imprimir qualquer maluquice
na pele de um ser humano. Julgavam que isso seria tática terrível para assustar
outras tribos. Pintavam-se de caveiras, dragões, morcegos e hieróglifos. Um desses
guerreiros, além da cabeleira em volutas como a Hidra de Lerna, escreveu no
braço “Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono” – e supunha agora carregar
ali a arma mortal de um pára-choque de FNM. Morreria mais adiante, atropelado
por um jogador alemão.
Antes das pugnas, os meninos de Tóis faziam questão de cantar inteiro o
hino de seu condado, num impressionante festival de cenhos franzidos, gargantas
arreganhadas e outros exageros da espécie. Seus antepassados, vencedores em
cinco torneios, nunca souberam uma frase do tal hino, complicadíssimo. A encenação
do canto a capela não tinha nada a ver com o jogo, não marcava gols e deixava
os guerreiros emocionalmente exauridos. De onde estavam, no entanto, podiam
ouvir o locutor dizer: “Estamos todos arrepiados”. Achavam por isso que estavam
com a mão na taça.
Os guerreiros de Tóis chegaram a levar para o campo de batalha a túnica
de um soldado ausente, ferido num combate anterior, numa tentativa mediúnica de
incorporar as forças dele aos sobreviventes. Achavam possível utilizar a túnica
de pano como arma de guerra. Vertiam lágrimas sob qualquer pretexto. Chorava mãe,
chorava pai, chorava todo mundo. O mais velho conversava com uma imagem de Nossa
Senhora de Caravaggio.
Definitivamente, o ar rarefeito da montanha onde viviam isolados começava
a lhes fazer mal. Gol, só de canela. A qualquer contato com o próximo, caíam ao
chão, contorcendo-se em dores invisíveis ao mais detalhista dos raios-x.
As ordens com que administravam os combates vinham de um velho pajé,
gordo de tanto anunciar lasanha na TV. Sua tática era sempre a mesma: “Atacar
com motivação, defender com auto-ajuda”. Ele agora tinha como truque principal a
capacidade de se transformar em sósias e espalhar a confusão. Ninguém sabia
afirmar com certeza quem era quem, mas diante de algum comentário mais lúcido
costumava-se creditar as palavras ao sósia. Na Civilização Tóis todo mundo
achou a multiplicação do técnico como uma versão moderna da multiplicação dos
pães, o sinal metafísico de que a guerra, ao findar do sétimo passo, estaria
ganha.
Os guerreiros de Tóis se achavam acima do bem, do mal e também por cima
da carne-seca, o alimento da infância que agora havia sido trocado pelas
marmitas mandadas trazer da Espanha, do novo restaurante do chef Ferran Adrià.
Alguns pintavam o cabelo todo dia, mas nunca acertavam o corte. A guerra do
futebol passou a ser apenas um detalhe, algo transmitido no telão onde
avaliavam como lhes ia a beleza.
Não treinavam. Tinham a força, a espada de Grayskull, o grito de Shazan,
o apito do japonês, o licor de jurubeba e o pó de pirlimpimpim. Na hora agá,
resolveriam. Tóis era a reunião de todos os poderes mais aqueles que os marmanjos
adolescentes tinham visto nos videogames da caserna na serra – e, dedicados a
se curtirem e se compartilharem nas redes sociais, nem perceberam o bicho vindo
pelo meio de campo desocupado. Foram sete dentadas na vaidade, na preguiça, na
ignorância e nos pescoços onde estava tatuado “Tudo passa”.
Nada passa, tudo fica – e fez-se o apagão eterno em Comary.
Nunca mais Tóis.
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