Rua Tejupá, 113 (11/08/2014)


Era uma casa muito engraçada como todas as guardadas na memória de uma infância feliz. No outro dia eu passei por lá, Rua Tejupá, 113, Vila de Penha, na esperança de refazer o espírito com as lembranças divertidas daqueles tempos idos, e qual não foi a minha surpresa-e-pasmo.
A tal casa muito engraçada – o programa do Jerônimo todo início de noite na Nacional, a cachorra Tupiara disparando latidos aleatórios no quintal –, a tal casa da minha infância querida que não volta mais tinha sido posta ao chão, atingida pelo desabite-se vulgar de uma secretaria de obras qualquer. “Demula-se”, deve ter carimbado a mula administrativa – e lá se foi meu passado de glórias infantis.
Desmemoriaram-me o quintal que servia de plataforma de balão japonês nas festas juninas. Destelharam-me a cozinha onde a mãe, doce senhora das prendas domésticas, pegava do facão e decepava o pescoço da pobre coitada galinha que acabara, viva, de chegar embrulhada em jornal. Ela recolhia o sangue do pescoço num prato. Em seguida, numa mesa portuguesa com certeza, transformava a cena de horror num inesquecível bife de sangue de galinha.
“Tudo acabado entre nós, já não há mais nada”, cantava Dalva de Oliveira ao fundo, num rádio de válvulas incandescentes que insiste em tocar até hoje – e foi a música que me veio à mente e aos sentidos naquele momento de constatação da perda.
Eu tinha ido atrás do muro contra o qual passava as manhãs chutando, de perna esquerda, o balão de couro ensebado, exercício pautado na esperança de mais adiante me transformar no novo Gerson, o Canhotinha de Ouro.
Eu fui atrás da rezadeira que me curara da espinhela caída e a ela pretendia pedir mais proteção. Tudo acabado e em vão. Dei de cara, na Rua Tejupá, 113, o endereço da infância e das “Reinações do Narizinho”, com um sobrado de dois andares estalando de novo, azulejado por toda a fachada e cercado de grades por toda a frente. O progresso era o novo proprietário.
            Não faço ideia de como seria o ordenamento urbano de uma cidade se todos se achassem no direito de conservar em pé as portas da infância. Só podia ser através delas que os jacarés, de madrugada, cruzavam os sonhos e iam se aninhar, assustadoramente silenciosos, embaixo da cama, iniciando as crianças nos sustos inevitáveis da vida.
Não sei o que seria da cidade se os moradores do subúrbio resolvessem deixar de pé, como monumentos, os tijolos que no passado os protegeram de bandidos como Tião Medonho, Cara de Cavalo e a Fera da Penha. Os facínoras, divulgados com palavras cheias pela Luta Democrática, do Tenório Cavalcanti, homiziavam-se pela Estrada do Quitungo, em valhacoutos ao pé da ladeira onde morava a Zilda do Zé. Investiam, graças a Deus sem sucesso, contra o Falcão Negro, o Vigilante Rodoviário, os Patrulheiros Toddy, o Anjo, o Bat Masterson, o Cabo Rusty, a oração do Júlio Louzada e os detetives da invernada de Olaria – heróis benignos e fortes porque, segundo nossos pais, tomaram na infância colheradas poderosas de óleo de fígado de bacalhau.
            De nada aqui reclamo, nem quero indenização pelos danos à história particular. Mataram os leões do Palácio Monroe, o que significa um sótão cheio de estampas Eucalol e a lembrança ainda palpável de abrir a mão da menina na brincadeira do anel? Num puxadinho que avançava pelo quintal, o velho pai português, a fim de reproduzir o cenário de sua Trás-os-Montes, trocou o telhado por uma cobertura de parreira de uvas.
            E daí? - perguntaria o burocrata com o poder do carimbo e a pretensão de fazer a cidade, azulejada, parecer mais rica.
Neste obituário de uma velha casa suburbana, tento apenas reconstruir com a argamassa frágil da memória algumas das janelas que se abriam e, quando não deixavam entrar o mortífero vento encanado, davam luz suficiente para o menino ler o futuro nas fotos das coxas da Rose Rondelli, também chamadas de mocotó, e do cabelo a la garçonne da Sandra Sandré, também chamado de taradinho.   
Isto aqui é apenas uma lágrima furtiva, não um discurso sobre o aggiornamento cafona da cidade. A casa da Rua Tejupá, 113, onde no frontispício estava escrito Lar de Hilda, tinha sido vendida há décadas pela minha família. Uma vez por ano, quando a vida se tornava real demais, quando o emplastro Sabiá colado ao peito já não era suficiente para proteger o corpo das flechas inimigas, eu passava por lá.
Há quem busque energias num spa. Eu revisitava a casa da infância e tentava lembrar como os heróis conseguiam energia para escapar da areia movediça. De vez em quando, encontrava num canto uma poção esquecida do pó de pirlimpimpim – e ia em frente.
Acabou. A casa caiu.


Comentários

  1. Ah, Joaquim, como te entendo. E como gostaria de escrever com esse encantamento. Também adoraria encontrar um punhado de pó de pirlimpimpim! Abs

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