Era uma casa muito engraçada como
todas as guardadas na memória de uma infância feliz. No outro dia eu passei por
lá, Rua Tejupá, 113, Vila de Penha, na esperança de refazer o espírito com as
lembranças divertidas daqueles tempos idos, e qual não foi a minha surpresa-e-pasmo.
A tal casa muito engraçada – o
programa do Jerônimo todo início de noite na Nacional, a cachorra Tupiara
disparando latidos aleatórios no quintal –, a tal casa da minha infância
querida que não volta mais tinha sido posta ao chão, atingida pelo desabite-se
vulgar de uma secretaria de obras qualquer. “Demula-se”, deve ter carimbado a
mula administrativa – e lá se foi meu passado de glórias infantis.
Desmemoriaram-me o quintal que
servia de plataforma de balão japonês nas festas juninas. Destelharam-me a
cozinha onde a mãe, doce senhora das prendas domésticas, pegava do facão e decepava
o pescoço da pobre coitada galinha que acabara, viva, de chegar embrulhada em
jornal. Ela recolhia o sangue do pescoço num prato. Em seguida, numa mesa
portuguesa com certeza, transformava a cena de horror num inesquecível bife de
sangue de galinha.
“Tudo acabado entre nós, já não
há mais nada”, cantava Dalva de Oliveira ao fundo, num rádio de válvulas
incandescentes que insiste em tocar até hoje – e foi a música que me veio à
mente e aos sentidos naquele momento de constatação da perda.
Eu tinha ido atrás do muro contra
o qual passava as manhãs chutando, de perna esquerda, o balão de couro
ensebado, exercício pautado na esperança de mais adiante me transformar no novo
Gerson, o Canhotinha de Ouro.
Eu fui atrás da rezadeira que me
curara da espinhela caída e a ela pretendia pedir mais proteção. Tudo acabado e
em vão. Dei de cara, na Rua Tejupá, 113, o endereço da infância e das “Reinações
do Narizinho”, com um sobrado de dois andares estalando de novo, azulejado por
toda a fachada e cercado de grades por toda a frente. O progresso era o novo
proprietário.
Não faço
ideia de como seria o ordenamento urbano de uma cidade se todos se achassem no
direito de conservar em pé as portas da infância. Só podia ser através delas que
os jacarés, de madrugada, cruzavam os sonhos e iam se aninhar, assustadoramente
silenciosos, embaixo da cama, iniciando as crianças nos sustos inevitáveis da
vida.
Não sei o que seria da cidade se
os moradores do subúrbio resolvessem deixar de pé, como monumentos, os tijolos
que no passado os protegeram de bandidos como Tião Medonho, Cara de Cavalo e a
Fera da Penha. Os facínoras, divulgados com palavras cheias pela Luta Democrática,
do Tenório Cavalcanti, homiziavam-se pela Estrada do Quitungo, em valhacoutos ao
pé da ladeira onde morava a Zilda do Zé. Investiam, graças a Deus sem sucesso, contra
o Falcão Negro, o Vigilante Rodoviário, os Patrulheiros Toddy, o Anjo, o Bat Masterson,
o Cabo Rusty, a oração do Júlio Louzada e os detetives da invernada de Olaria –
heróis benignos e fortes porque, segundo nossos pais, tomaram na infância
colheradas poderosas de óleo de fígado de bacalhau.
De nada
aqui reclamo, nem quero indenização pelos danos à história particular. Mataram
os leões do Palácio Monroe, o que significa um sótão cheio de estampas Eucalol
e a lembrança ainda palpável de abrir a mão da menina na brincadeira do anel? Num puxadinho que avançava pelo quintal, o velho pai português, a fim de
reproduzir o cenário de sua Trás-os-Montes, trocou o telhado por uma cobertura
de parreira de uvas.
E daí? -
perguntaria o burocrata com o poder do carimbo e a pretensão de fazer a cidade,
azulejada, parecer mais rica.
Neste obituário de uma velha casa
suburbana, tento apenas reconstruir com a argamassa frágil da memória algumas
das janelas que se abriam e, quando não deixavam entrar o mortífero vento
encanado, davam luz suficiente para o menino ler o futuro nas fotos das coxas
da Rose Rondelli, também chamadas de mocotó, e do cabelo a la garçonne da
Sandra Sandré, também chamado de taradinho.
Isto aqui é apenas uma lágrima
furtiva, não um discurso sobre o aggiornamento cafona da cidade. A casa da Rua
Tejupá, 113, onde no frontispício estava escrito Lar de Hilda, tinha sido
vendida há décadas pela minha família. Uma vez por ano, quando a vida se
tornava real demais, quando o emplastro Sabiá colado ao peito já não era
suficiente para proteger o corpo das flechas inimigas, eu passava por lá.
Há quem busque energias num spa.
Eu revisitava a casa da infância e tentava lembrar como os heróis conseguiam
energia para escapar da areia movediça. De vez em quando, encontrava num canto
uma poção esquecida do pó de pirlimpimpim – e ia em frente.
Acabou. A casa caiu.
Ah, Joaquim, como te entendo. E como gostaria de escrever com esse encantamento. Também adoraria encontrar um punhado de pó de pirlimpimpim! Abs
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