Os dois andam
sempre juntos. Lupicínio Rodrigues faz centenário neste 16 de setembro. Antonio
Maria se foi desta para melhor há 50 anos, num dia 15 de outubro, às três e
cinco da madrugada. Por coincidência, a hora que tinha servido de título a uma
canção onde ele narrava mais uma cena de ciúme, mais uma briga e mais um arrependimento.
O de sempre em suas músicas. “A verdade da vida é ruim”, disse numa delas, como
quase todas as outras, de profunda infelicidade. Ele não se iludia com alegrias
vãs. O universo conspirava contra.
Lupi e Maria, os reis da dor de
cotovelo, sofreram o diabo nas mãos desse tal de amor. Machos sensíveis, não
escondiam a decepção. Contavam para todo mundo. O amor não presta. Tinham
sofrido, tinham sido outra vez enganados por uma mulher qualquer que se mandou
com outro ou simplesmente com ninguém, sozinha, entediada com o que ela também
não sabia explicar. Ninguém sabe. O amor trata a todos com a mesma ignorância e
falta de consideração. Simplesmente vira as costas. Cai fora. Vai tratar da
vida.
Maria, existencialista
pernambucano, chorava baixinho, de fracasso em fracasso, o samba canção que na
vida lhe era destino. “Ninguém me ama, ninguém me quer” – e ficava por isso
mesmo. Maldizia-se solitário num balcão de bar em Copacabana, estimulando a
cardiopatia que naquela madrugada, às mesmas três e cinco da canção, o levaria
para longe desse inferno.
Estava cansado de saber que o
amor era uma maldição a se enfrentar com cuidado, mas vira e mexe lá estava ele
atrás de um bem que nunca vinha, como dizia outra de suas letras elegantemente
perdedoras. Todo mundo se engana muito, Maria também. Tentou ser feliz. Vedetes
do Carlos Machado, moças da sociedade, dançarinas de cabaré, balconistas da
Praça do Lido. Todas lhe deram o implacável pé na bunda. No dia seguinte,
Maria, romântico incorrigível, fazia uma canção perguntando gentilmente: “As
suas mãos, onde estão? Onde está o seu carinho?”.
Já Lupicínio Rodrigues, mulato
gaúcho, tinha menos cuidado com as trapaceiras. Era um chifre atrás do outro. A
cada traição, ao contrário do gentleman Maria, queria que a infeliz amargasse
todo o sofrimento previsto nas escrituras do amor. Corno, sim, manso, jamais.
Quase toda a sua obra é devotada a ir à forra dessas rameiras, vagabundas, piranhas
e demais ordinárias. Um dia, elas lhe fingiam bom sentimento, logo depois,
cachorras num cio eterno, se mandavam com um novo otário.
Lupi queria
vingança. Queria mais é que essas canalhas da desventura amorosa rolassem na
beira da estrada, sem ter nunca um cantinho para poder descansar. Tinham
nascido com o destino da lua, pra todos que vivem na rua. O homem reagia à
altura. Guardava rancor. Passava recibo.
As últimas palavras escritas por
Antonio Maria, numa crônica sobre um almoço solitário no restaurante Westfalia,
na Rua México, foram “só, só, só”, e evidentemente falavam de si próprio. Era amante
de bons modos, reprimia o instinto assassino a quem lhe fazia mal. Não à toa,
enfartou. Lupicínio preferia palavras como “covardia”, “judiaria” e “ingratidão”
para descrever o que sofria nas mãos das vadias. Numa de suas músicas mais típicas,
descreveu ter no peito uma caixa de ódio, um coração que não quer perdoar. Era
pão-pão, queijo-queijo. “Eu estou lhe mostrando a porta da rua, pra que você
saia sem eu lhe bater” – disse em outra canção. Zero de romance, zero de
beneplácito com quem lhe bagunçava o coreto. Ao pé na bunda reagia com a porta
na cara. Danem-se todas.
Esses dois gênios da canção
amorosa estão sendo lembrados agora, centenário de nascimento de um,
cinquentinha da morte do outro, num momento em que quase não há mais canção
amorosa brasileira – e, quando há, ninguém mais perde no jogo da paixão. Somos
todos funkeiros comedores das cachorras mais suculentas, príncipes vitoriosos que
sustentam suas coroas sem a galhofa pública dos chifres. Ninguém abandona
ninguém. Troca-se de status no perfil do Facebook, compartilha-se a existência,
e vida que segue – todos imbuídos da certeza de que o amor deixa muito a
desejar. Acho que Lupi gostaria.
Ele não tinha nada contra quem
conseguisse ser feliz. Mas, coitado, viveu o amor antigo, a armadilha de um
lotação dirigido por pessoas com nervos de aço, sem sangue nas veias e sem
coração. Foi atropelado várias vezes pela frieza de suas motoristas. Numa outra
letra, uma mulher o trocou pelo médico contratado para lhe tirar os bichos-de-pé.
Definitivamente, amor e
bicho-de-pé são doenças de um país rural. Passaram. Ficaram as músicas, das
quais, graças a Deus, jamais nos curamos. Ficou também a lição do cadáver de
Antonio Maria exposto na calçada suja de Copacabana, quatro meses depois de o
compositor ser abandonado pela grande mulher da sua vida. O amor é um samba
canção que deixa muito a soluçar.
Linda crônica.
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