O Vinicius sumiu (01/09/2014)



Fale da sua aldeia e serás universal, recomendava Tolstói, mas eu só quero no máximo ser municipal ao declarar aqui o sumiço – ele estava logo ali na esquina da Nascimento Silva – do grafite em que Vinicius de Moraes, na rua que leva seu nome, olhava, desenhado na parede, a multidão a caminho do mar, do trabalho, dos sonhos e das compras de presunto fatiado na Casa Nelson.
Procura-se e pede-se de volta. Bote-se no mesmo lugar o sorriso do velhinho, pois ele fazia a turbamulta se alegrar.
Na última vez em que foi visto, desenhado pelo grafiteiro Andrea Brandani, Vinicius estava sentado num banquinho de bar, daqueles em que fazia pocket-show com Toquinho. Parecia feliz, cercado do grafite de personagens do cotidiano de Ipanema, gente como o Damião Experiença, a Ana Maria Carvalho, a Tetê do Barteliê, o gari Gilmar e o baleiro Virgulino Lampião. Sumiram todos. O Delmário, vendedor de frutas, ia ser o próximo a ser eternizado. Não deu tempo.
No lugar deles, da noite para o dia, surgiu a boneca Nina do grafiteiro Toz, uma menina muito bonitinha, mas já constante em tantos outros muros da cidade, e que agora, coitada, diante da estupefação de todos, passa as horas respondendo aos transeuntes sobre o que foi feito do mural do Vinicius, uma referência da rua. Nina diz não saber de nada, que também gosta de poesia, e mostra como prova o fato de estar cercada de flores grafitadas em todas as cores.
A Rua Vinicius de Moraes tem o Bar Mosca, que anda às moscas desde o fechamento da Faculdade da Cidade, e um espetacular corredor de amendoeiras, todas  guerreiras, sobreviventes com apenas duas baixas à praga do besouro que arrasou com mais de 30 cassia-de-sião na vizinha Barão da Torre. Há cinco anos é a minha aldeia. A seus habitantes e cenários só devo elogios e inspiração.
Na ponta da praia, brilha a cobertura de mil metros quadrados do empresário Marcel Teles, do Grupo Garantia, em obra há três anos. Na ponta da Lagoa, o cubo de cimento da Dama de Ferro, a boate que abrigava jovens muito pálidos, todos vestidos de muito preto, e que agora dormita vazia, velada na fachada pelo grafite de uma playlist onde constam desde “West end girls”, com os Pet Shop Boys, até “Tai”, a marchinha de Joubert de Carvalho.
No meio disso, estão os CDs de Ed Lincoln e Walter Wanderley na vitrine da Toca do Carlos Alberto, os passeadores de cachorro que cobram até R$ 500 por mês, as garrafas de bourgogne da Lidador a R$ 920 e a eterna memória de que foi ali, na esquina com Prudente de Moraes, que Vinicius e Tom viram Helô Pinheiro em 1962, um broto, uma uva, passar a caminho do mar, dando-se então a inspiração de onde surgiria a “Garota de Ipanema” e uma nova civilização carioca a beira mar plantada.
De vez em quando a gangue da bicicleta toca o terror e o foguetório do Cantagalo fica mais irado. De um modo geral, no entanto, ouve-se mesmo é a sonoridade benigna da roda de chorinho aos sábados, do garçom Chiquinho pedindo mais um chope no Torre do Barão e dos carimbos de Ilmar e Leão, os bicheiros em frente ao Bunda de Fora, carimbando com ritmo os números que em seguida serão afixados nos trocos das árvores.
Foi desse cenário que, assim sem mais, extirpou-se de uma de suas paredes a imagem daquele a quem agora nesta crônica procura-se desesperadamente, o poeta Vinicius de Moraes que dá nome à rua e nela já não está mais. Para onde foi? Urge que volte. Nos anos 1960, Haroldo Barbosa e Raul Mascarenhas fizeram o samba “Procurei por toda a cidade o seu criador/ Onde estará?/ Cadê a estátua de Estácio de Sá?” – e a partir daí construiu-se no Aterro uma pirâmide para ele.
Será que Vinicius cansou de fazer pose, servir de fundo para selfie de turista e, por espontânea vontade, escafedeu-se do muro?
Será que ele foi vítima de uma guerra de grafiteiros em busca de paredes numa cidade cada vez mais cercada de grades?
O que se sabe até o fechamento desta edição é que ele não está mais na parede da sua própria rua, apagado que foi na esquina da Nascimento Silva, em frente ao bar Cantinho de Ipanema. Era um grafite parecido com aqueles afrescos onde os muralistas mexicanos colocavam os heróis pátrios em cenas de guerra contra os espanhóis – com a diferença de que em Ipanema não há declaradamente uma guerra do tipo clássico. Pelo contrário. Todos os personagens do grafite agora desaparecido mostravam-se felizes de estar ali, numa síntese do espírito do bairro. Curtiam com expressão amistosa o espetáculo de ver gente que vai e gente que vem por uma rua marcante da história recente da cidade.
            Será que Vinicius foi até a esquina de Visconde de Pirajá olhar a vitrine de calcinhas e sutiãs da Casa Futurista, apaixonou-se por uma das modelos e com ela se casou na igreja da praça?
            Procura-se, desesperadamente, a poesia de volta.

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