Até que ponto um homem e uma
mulher podem ser amigos? Até que ponto a amizade que Rubem Braga desenvolveu
pela mineira Myriam Rezende Costa não foi a do homem resignado a um prêmio de
consolação por não poder ir mais além, num projeto de felicidade ainda mais
sublime, com uma mulher que evidentemente lhe fascinava?
Esta é a história de uma bela amizade,
com propostas de um quase romance, entre o grande escritor capixaba e a moça,
moradora de Copacabana. Conheceram-se no início dos anos 1950. Ela, na flor
alegre dos seus 20 anos, propunha os versos do samba-canção: serem amigos
simplesmente, nada mais. Ele, já percorrendo a via crucis dos 50, cético dessas
fraternidades, conformava-se.
Esta delicada história de um
homem e uma mulher, decididos a se acompanharem do jeito que fosse possível, não
fez parte da biografia de Rubem, “O fazendeiro do ar”, lançada em 2007, pelo
pesquisador Marco Antonio de Carvalho. Só está sendo contada aqui por que fui
presenteado com uma coleção de 17 cartas do cronista para Myrian. Foram
escritas em 1955, quando ele trabalhava como adido comercial do governo
brasileiro no Chile. Myrian, secretária trilingue, estava em Nova York.
Fernando Sabino dizia que a sorte
dos homens de sua geração era o fato de, pessoalmente, Rubem Braga quase não
falar. Sempre casmurro, um urso, suas palavras saíam como se rosnasse. Se
falasse como escrevia, dizia Sabino, não sobraria mulher para mais ninguém.
“Anjo”, escreveu Rubem para
Myrian em 18 de novembro de 1955, “penso em você nesse apartamentinho e me vejo
te visitando, abrindo latas, cortando o dedo, te ajudando a lavar pratos,
embora visivelmente contrariado. Eu compraria mil pratos de papel e comeria
neles, embora isso seja péssimo”.
Rubem tinha o dom de escrever
como se não estivesse nem aí para a pompa do ofício. Um mestre na arte de fazer
parecer tudo fácil e simples. Se era assim em público, na sua genial coleção de
crônicas, imagine na intimidade das cartas para uma mulher a quem queria
impressionar. Em 19 de agosto de 1955, ele brinca com a frustração de não terem
sido amantes. Seriam mais felizes ou mais infelizes? No início da carta, chamara
Myrian, levemente dentuça, de “Minha querida bicudinha”.
“O Chile é um bom lugar para
solteiro e me sinto muito instalado em minha vida, mas por outro lado há essa
coisa um tanto melancólica de solteirão. No fundo, tenho medo de um grande
caso, de gostar como já gostei umas três vezes em minha vida, de corpo e alma.
Você me assustou bastante, e no fundo sua ‘mesquinharia’ talvez tenha sido um
bem. Imagine eu morto de paixão por esse diabo dessa bicuda que gosta dos
outros.”
Myrian casou duas vezes. Mora hoje
no mesmo edifício de Copacabana onde Rubem a visitava, antes de ele seguir para
o Chile, e ela, para Nova York. Gostavam de jantar no Rond Point, um
restaurante na esquina das ruas Fernando Mendes com Nossa Senhora de
Copacabana. Os amigos achavam aquilo estranhíssimo. Em que ponto misterioso da
existência humana se dava a liga do encontro feliz entre um velho feio e de
maus bofes com uma jovem linda e de bem com a vida?
Rubem e Myrian evidentemente não se
perguntavam nada – e juntos, pelas químicas divinas da amizade, misturavam os
elementos, a ponto de ela, na contramão da Humanidade, se lembrar do amigo como
o homem mais falante e divertido que conheceu.
Quando longe, diretamente do bom
emprego que o governo de Café Filho lhe dera em Santiago do Chile, Rubem Braga continuava
seu delicado papo de cerca-lourenço em cima da amiga-firme, namorada-inalcançável.
Nas entrelinhas de uma carta de 21 de outubro de 1955, uma sexta-feira, tentava
provocar ciúme:
“A primavera no campo está linda.
Combinei com uma enfermeira universitária fazer uma viagem para assistir a um
‘rodeo’ em San Fernando, amanhã, depois dormir numa praia, voltar domingo à
noite. Mas agora estou hesitando, não sei se a enfermeira justifica o ‘rodeo’
ou se o ‘rodeo’ justifica a enfermeira. O caráter, entrementes, continua
impoluto. Ah, e não namore demais esses americanos. Esse negócio de ‘kiss-me
good-night’ me enerva, sem falar no resto.”
No dia seguinte, sábado, 22, Rubem
manda para Myrian, em Nova York, outra carta, repleta de ternura, e muda seu
desejo sobre o que seria um fim de semana de agenda realmente feliz:
“Meu arcanjo do Barbizon: está um
sábado de muito sol. Acho que não vou a ‘rodeos’ nem a enfermeiras. Gostaria de
sair com você hoje, passar o week-end fora, na praia ou na montanha. Mas com
toda certeza você já tem outro programa, e além disso no seu hoje já não é mais
sábado. Que pena!”.
Quanta riqueza temos nas cartas antigas.
ResponderExcluirHoje, em meio a telefonemas, emails, mensagens instantâneas e redes sociais acho que perdemos o "delay" que as cartas tinham.
Os sentimentos se tornaram dinâmicos como essa mensagem e previsível como a qualidade do seu texto. Abraços.