Fim de caso (17/11/2014)


E lá estava ele novamente dando bandeira, no meio da calçada, mais um fim de caso sendo exposto à consternação pública às 22 horas de segunda-feira passada em plena Rua Vinicius de Moraes, justo aquele poeta que um dia, depois talvez de ter vivido algo parecido, sentou-se à máquina e escreveu o que ninguém desmente, aquilo a que ninguém suporta, mas está sempre acontecendo: “O amor é a coisa mais triste quando se desfaz”.
            Eu vinha ensimesmado nas minhas preocupações ligeiras, pensando na morte da bezerra e em tantas outras memórias antigas que me são costumeiras, quando de repente, quase na esquina com Visconde de Pirajá, eu ouvi uma voz masculina embargada, numa emissão que conseguia ao mesmo tempo ser enérgica e estar carregada de profundo sentimento. O homem dizia uma frase de conteúdo inesperado, íntimo demais para ser proferida ali, com tanta emoção, no meio de uma rua de Ipanema.
            Eu olhava para o chão, num zero absoluto de interesse pelo que fosse vida alheia, retrancado com toda a ênfase no que apenas a mim era inerente, a delícia intrínseca do pensamento voando à toa. De repente, a voz masculina me fez levantar o rosto e voltar ao mundo real.
            Não deu tempo de mudar o rumo da minha caminhada, de balbuciar algum tipo de desculpa por estar entrando tão subitamente na intimidade de desconhecidos, mas afinal eu não tinha culpa. Eu preferia estar mergulhando, como diz aquele plástico no vidro dos carros engarrafados no trânsito do Rio.
Eu gostaria de ter continuado a caminhada pela Rua Vinícius de Moraes na ilusão de que o mundo era composto apenas das suaves inquietudes que me assoberbavam naquele momento, trivialidades tão passageiras que me deixaram envergonhado de estar entretido nelas enquanto um drama daqueles, o que me anunciava a voz masculina, acontecia com tamanha urgência no meio da rua.
            “Você acha mesmo que eu estou estragando a sua vida?”, foi a frase do rapaz que me fez acordar.
Levantei os olhos do chão e eles foram primeiro na direção da voz, no lado direito da calçada, onde estava o jovem de seus 25 anos, apoiado numa bicicleta. Do lado esquerdo, uma moça, morena, muito bonita, mais ou menos a mesma idade. Meus olhos foram logo na direção dela porque, mal o rapaz acabara o seu texto, a indagação incrédula de que pudesse estar estragando a vida do que parecia ter sido a sua namorada, e a moça respondeu veemente: “o que você acha, cara, o que você acha?”.
            Eles estavam afastados por um metro de distância, cada um de um lado da calçada, e deixavam no meio um corredor para que o resto do mundo passasse. Não havia mais ninguém na rua àquela hora. Quando percebi, eu passava bem no meio das desilusões do jovem casal.
Era constrangedor ver meu vulto interferir sem ênfase, tentando emular um pedestre passando indiferente, em meio a uma cena dessas, mas quando a frase me acordou eu já estava praticamente entre os dois. Não tive alternativa senão cruzar, simulando um jeito de que não estava acontecendo nada ou que pelo menos eu não estava percebendo qualquer anormalidade. Pedir desculpas seria ridículo, assim como desnecessário. Eles não ouviriam.
            O casal devia estar se sentindo sozinho no mundo, cercado apenas pela multidão dos fantasmas que povoa o fim de qualquer relação amorosa. Eles são tantos, revezam-se assustadores para cada momento de infelicidade, com um lençol branco específico para cada casal, que eu seria leviano se dissesse ter visto por ali o fantasma da traição, do ciúme, ou qualquer outro desses Plufts sem humor, comuns à ópera adulta que um dia todos nós encenamos.
            O amor acaba sem motivo específico, sem marcar hora, sem escolher cenário e sem preferência por assombrações. Também não escolhe coadjuvante, e nesse papel que me coube eu procurei ser o mais pedestre possível. Acelerei o passo quando vi do que se tratava. Evitava assim não constranger o casal com a realidade de que eles não estavam sós, mas em plena luz da lua, na porta de uma loja de sucos e joelhos de porco, revirando em público os panos de prato sujos e as fronhas manchadas da relação. Acabou. Tinham sido felizes, não se conformavam. Foram para a rua gritar o espanto e ver se alguém ajudava, se o governo lançava um Bolsa Felicidade.
Se as cartas de amor são ridículas, como queria o bardo português, o que falar de um caso de amor que se encerra num cenário desses? Passei no meio do casal, como se fosse uma tesoura que dava o último corte no que ainda havia entre eles. Antes que um dos dois me parasse para julgar quem tinha estragado mais a vida do outro, eu fui em frente, na certeza de que logo em seguida eles fariam o mesmo, procurariam a felicidade em outra rua – e que a vida é assim mesmo, dói, mas até o Vinícius de Moraes assinaria embaixo, e não há nada mais a fazer.  

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