O Rio fica longe (03/11/2014)



A revista Carioquice, um dos mais bem guardados segredos do Rio, está lançando um número especial de décimo aniversário. Apresenta listas de “mais”: os parques mais bonitos da cidade, os restaurantes mais deliciosos, as músicas mais delicadas na exaltação deste cenário de real valor e outras avaliações de magnitude municipal. Ficou caprichado. Seguem daqui os cumprimentos ao Instituto Cravo Albin, responsável pela publicação. Faço votos de que a revista não esmoreça, jamais caia, nesta trilha que já lhe vai mais esticada que a Restinga de Marambaia.
O que eu queria mesmo, no entanto e todavia, é propor para o futuro uma edição especial com listas de “Menos”.  
Por motivos graves, que expostos aqui impediriam a crônica de seguir sua leveza inerente, o carioca não conhece a cidade. Machado de Assis pegava o bonde no Cosme Velho e ia buquinar nos sebos da Ouvidor. Hoje, na cultura do “cada um em seu quadrado”, é cada um no seu quarteirão – e de volta para casa, rápido, para ver no Houaiss que negócio é esse de buquinar.
Valoriza-se a segurança do cartão postal, da paisagem conhecida. A maior distância percorrida por um carioca é a que vai de uma ponta à outra no calçadão da orla aos domingos. De resto, muita preguiça de escarafunchar a cidade. Descobrir becos escondidos, só se eles estiverem naquele cantinho à esquerda, na parte oriental do mercado velho de Jerusalém. O carioca acha o Rio longe.
Ai de mim, um zé-mané-joaquim, lançar qualquer vírgula envenenada, como se fosse mais uma flecha afiada, contra o coração do São Sebastião padroeiro. Aplaudo quem elege a Floresta da Tijuca, o Antiquarius, o Municipal, o Copa, a Lapa e “O samba do avião” como os mais-mais de suas categorias. Adoro tudo isso e parabenizo os eleitores da Carioquice. Mas essas atrações já estavam em cartaz há um século. Chegou a hora de buquinar gostoso e descobrir outras raridades, no sebo de paisagens e referências delirantes que residem na cidade.
Quando você estiver na Praça Mauá, pegue a escadaria da Travessa do Liceu, atrás do edifício da Rádio Nacional, e suba-e-desça a Ladeira João Homem. É o meu voto para “A menos conhecida das ruas deslumbrantes do Rio”. O trecho da Saddock de :Sá colado ao morro não faz feio, mas é no clichê de Ipanema. A João Homem, na subida do Morro da Conceição, está com o seu casario inglês estalando de novo por causa da especulação imobiliária do Porto Maravilha. Vá antes que abra o museu do Calatrava, logo abaixo, e ela se torne, como todas as atlânticas e vieirasoutos, uma passarela de turistas.  
Na hora do almoço, dê um tempo no Antiquarius. Salte no metrô da Presidente Vargas, pegue a Rua da Conceição em direção ao porto e, antes de bater de cara com o sopé do Valongo, entre no Bar Joia, na esquina com Julio Lopes de Almeida. Peça um feijão com paio. Desde já, se um dia eu estiver no corredor da morte, saibam todos os carrascos que este é o meu pedido oficial de última refeição.
O Joia leva meu voto para o “Menos afetado e conhecido dos grandes restaurantes de comida carioca”. Se houver a categoria “Decoração menos Casa Cor dos santificados botequins do Rio”, também recebe meu escrutínio. Só o gênio da decoração intuitiva misturaria um busto do Beethoven (o ídolo do finado “seu” Joia, compositor da música ambiente) e a tremenda confusão icônica, colada nas paredes, de fotos de mulheres peladas e times do Botafogo vestidos.
Proponho também, limpos os beiços, que se vire o disco da carioquice. Quem sou eu de desmerecer a “Valsa de uma cidade”, de Antonio Maria e Ismael Neto, a segunda colocada entre as músicas que cantam a cidade. Linda, claro, mas o bom gosto clássico do samba canção não é tudo. Eu incluiria entre “As grandes músicas menos conhecidas do tributo à carioquice ligeira” o passeio malicioso de Jorge Veiga na marchinha “O que é que há com a sua baratinha”: “Visitaremos primeiro a Tijuca, visitaremos depois o Leblon, vais ver que coisa maluca, vais ver que passeio tão bom”.  
O Rio é uma cidade, merecidamente, massacrada pela exposição de seus paraísos na mídia, mas as listas de mais lindos cenários tornaram suas fotos um sonolento desfile de dejávistos. É um clichê atrás do outro, todos poeticamente melosos e cheios de nuvens brancas ao redor do Cristo. Sei de gente que depois se desculpa pela blasfêmia, mas, diante de mais uma foto de celebridade internacional com o Dois Irmãos ao fundo, boceja estridente.
A vida é um GPS sempre ligado na busca insaciável de novos prazeres. Precisa de uma renovação voraz de outras palavras e paixões. Por isso, carioca, sai do seu sono devagar, e invente novos cultos de adoração. Tenho medo que um dia a garota de Ipanema finalmente se renda aos meus encantos e eu, como se já a tivesse em casa por todos esses anos, diga um não entediado.

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