Uma cidade
não é feita apenas de concreto, monumentos e paisagens naturais, mas também da
geografia organizada pelo olfato. É o aplicativo humano que ao descer do avião,
ao pôr os pés na pista do aeroporto, recebe os cumprimentos de uma monumental
lufada de maresia dizendo, welcome, você está no Aeroporto Santos Dumont. É
apenas a primeira prise alucinatória da cidade. Logo o visitante estará viajando
dentro da nuvem de maconha, o espanto que no GPS olfativo identifica a chegada
ao Posto 9. No almoço de domingo, ao se aproximar um sopro embebido em picanha,
esteja certo: Estação Baixo Gávea.
O Rio de
Janeiro cheira. Às vezes bem, às vezes mal – mas há controvérsia sobre o que
seja uma categoria ou outra. Há quem torça o nariz para a fragrância
personalizada dos shoppings, seja o cítrico do Rio Sul ou o adocicado do Leblon,
e desfaleça seduzido pelo odor do churrasquinho de gato na esquina de Botafogo.
As feiras são um festival de perfumes a cada barraca, abacaxis e frangos misturados.
Aproveite, porém, porque o politicamente correto ameaça passar um desses
desodorantes sem cheiro e higienizar a cidade. Na contramão, um carioca radical
pede, de quando em vez, uma rápida mortandade de peixe na Lagoa.
Todos os perfumes, inclusive os
mais selvagens, são bem vindos. Uma cidade se faz com eles também. Do cheiro dos
macacos sobre as árvores do Jardim Botânico ao frescor da chuva de verão
batendo na terra do Aterro. A Juliana Paes usa Insolence, da Guerlain – mas é
difícil chegar perto. Sem preconceito. Abra suas asas, solte suas narinas e deixe
as gotas de Chanel nº 5 apenas para a hora de dormir.
Na geografia dos aromas, a brisa marinha
bate na murada da Urca e as maçãs verdes dão o tom na entrada do Copacabana
Palace. A Lapa é bafo de chope; o Horto vibra os gomos de jaca embaixo do sol
de 40 graus. Em alguns quarteirões de Copacabana os mais antigos ainda sentem,
na esquina de Barata Ribeiro com Constante Ramos, o éter cheirado por um
mendigo classe média, mais tarde personagem de poema de Abel Silva.
Os sovacos das garotas do bloco
Suvaco do Cristo são modernamente acobertados pela nova linha de desodorantes
sem perfume, mas, na profusão de suores e marchinhas do decorrer do desfile,
dizem os que chegarem mais perto, rescende dali uma essência diabolicamente
carnavalesca e entorpecedora dos sentidos. Tem ainda as flores mortas do São
João Batista, o xixi no amanhecer da Farme de Amoedo e as fornadas, cada vez
mais raras, escondidas no fundo das lojas, das bisnagas da padaria. Nas noites
de sexta-feira, a rua Miguel Couto é banhada pelo fabuloso azeitado das
sardinhas fritas de seu corredor de bares.
Já se catalogou o Rio por todos
os quesitos, do patrimônio religioso ao afetivo, mas urge documentar também, sem
falsos pudores, toda a sua gama de odores. O botequim que fundou a tradição
carioca de cultuar a espécie do pé-sujo chamava-se “Mau cheiro”, na entrada do
Arpoador, e já anunciava no nome não estar disposto a afetações. Leila Diniz, adepta
da água de colônia, ia lá. São aromas aparentemente idos, mas eis que aparece Carlos
Drummond de Andrade, morador das proximidades, na Rua Conselheiro Lafaiete, 60,
e diz que não. De tudo fica um pouco: “Abre os vidros de loção e abafa o mau
cheiro da memória”.
Foram-se, a propósito, os cheiros
que pontuavam a Avenida Brasil e permitiam aos passageiros dos ônibus, indo do
subúrbio para o Centro, saber onde estavam sem tirar os olhos da leitura do jornal.
Primeiro passava-se pelo Curtume Carioca, na altura da Penha, depois pela Fábrica
de Sabão Português, em São Cristóvão. Eram experiências olfativas poderosas, hoje
apagadas fisicamente, mas para sempre – ninguém abafa – no vidro de loção da
memória carioca.
Resiste, e assim se espera que
por muito tempo, a nuvem embebida em cafeína que paira há anos sobre os
transeuntes da Rua Marechal Floriano, na calçada do Café Capital. Na contramão
do expresso, a loja usa o coador de pano e isso sacode o perfume do pó longe.
Imediatamente, na cabeça dos mais antigos, Dóris Monteiro começa a cantar o
jingle: “Tomo um, tomo dois, tomo três, porque bom mesmo é Café Capital outra
vez”.
Um perfume – sabem os que deram
prise de lança no cangote de alguma paquera carnavalesca dos anos 1950 – tem
poderes que a madeleine de Proust nem imagina. Materializa namoradas envoltas no
patchouli dos anos 70, evoca vitórias do Fluminense no tempo em que a torcida
saudava o time com uma viril nuvem de pó de arroz. A pipoca na porta do Metro
Copacabana, o angu do Gomes na carrocinha do Largo da Carioca. Um perfume
desenha uma cidade.
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