Aqui, ó! (12.01.2015)



Tem o Charlie francês, este que agora todos nós somos, mas eu sou também Ivan Lessa (1935/2012) e tenho certeza que ele só não teve destino igual aos colegas do Charlie Hebdo porque a redação do Pasquim, o jornal de onde atirava contra tudo que mexia, estava no alto da ladeira da Saint-Roman, acesso ao Pavão Pavãozinho de antes da UPP. A bandidagem grassava ao redor. Ninguém seria bobo de subir até ali e, amuado porque na edição passada o humorista levantara a burca de sua mulher, tentar alguma desgraça contra as graças de Ivan. Ainda não havia essa discussão sobre os limites para a correção do humor. Pelo contrário, só valia o que era incorreto:
            “Brasileiro não estaciona carro. É retirado das ferragens”.
            “No Nordeste, cada vez que um flagelado exala o último suspiro, alguém imediatamente o acusa de repetir em vão frases feitas”.
            “Três em cada cinco índios são, cada vez mais, um só. Os outros dois também”.
Eu sou Charlie, sou Ivan, e também o Barão de Itararé (1895-1971). Ele foi aporrinhado tantas vezes pelos muçulmanos de sua época, a polícia política de Vargas, que diante das constantes visitas dos meganhas deixou um aviso na porta do escritório:
            “Entre sem bater”.
            Os católicos também não levavam vida melhor com o Barão:
            “Quem empresta, adeus”.
            “A alma humana, como os bolsos da batina de padre, tem mistérios insondáveis”.
            Os grandes humoristas brasileiros poderiam estar na reunião de pauta da Charlie Hebdo, afiando seus lápis para na próxima edição redesenhar a Humanidade e, quem sabe, torná-la menos hipócrita, sagrada e arrogante. Há um formidável histórico de Charlies nacionais, humoristas que ampliaram os limites da liberdade de expressão e pagaram o preço cobrado pelas tiranias de cada época.
Eu sou Jaguar, trancafiado durante dois meses na Vila Militar. Eu sou Ziraldo com a faca espetada no peito e a frase síntese dessa turma: “Só dói quando eu rio”. Eu sou Stanislaw Ponte Preta esfregando o festival de besteira que assolava o país na cara dos militares e morrendo do coração antes de sofrer as conseqüências.
Eu sou muitos e também Antonio Maria (1921/1964). Mais conhecido por suas canções passionais, o gordo foi humorista extraordinário em imprensa, rádio e TV. Os militares, os religiosos, a mulher amada, todos eram alvo de seu humor fino, com muito estilo e completo desinteresse pelos bons modos:
“Gente má dorme em posição de sentido”.
“Só existe uma semana santa, nas outras vocês matem quem quiser”.
“A mulher pode não ter muita vergonha nos outros lugares, mas na cara tem”.
O playboy Baby Pignatari não gostou de uma piada que Maria publicou na Ultima Hora e, numa briga na boate Sacha’s, ameaçou quebrar-lhe os dedos da mão. Dizia que era para ele, assim, parar de escrever.
“Eu escrevo com a cabeça, seu idiota”, revidou o Menino Grande – e revidou a pancadaria.
Eu sou Millôr (1923/2012), aquele que disse “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Ele abriu a revista Pif-Paf em plena ditadura militar e foi obrigado a fechá-la oito números depois. Não era de esquerda, nem de direita – era do contra:
            “A Nova República é apenas o cadáver da velha. Vê-se pelos vermes”.
            “Cada um carrega a sua cruz. Ainda bem que eu não sou religioso. Deve ter alguém por aí carregando duas”.
            “Só quem tem uma casa, mulher e filhos, um verdadeiro lar, pode experimentar a extraordinária paz e felicidade que é um dia se livrar de tudo isso”.
            Hoje, leia na minha camisa, eu sou Charlie, movido pelas circunstâncias e a facilidade de, através de uma frase simples, mostrar os perigos do obscurantismo. “Je suis Charlie”, para quem não fala francês, quer dizer eu sou a vela que não se deixará apagar pela violência.
Eu sou o humorista francês morto, sou Wolinski e mais os outros. Mas sou ainda Chico Caruso, Fortuna, Redi, Vilmar, Claudius, e a memória de tanto brasileiros que sofreram as violências mais diversas pelo direito de se expressar.
Eu sou Henfil (1944/1988), por exemplo, tantas vezes carimbado com o “Proibido” dos censores por ter colocado o caboclo mamadô chupando o cérebro dos reacionários. Ele não era de um lado nem do outro. Queria anarquizar o coreto. Sua manifestação mais clara disso foram as desventuras dos fradinhos. Numa delas, o fradinho comprido, penalizado diante de uma criança, diz “Meu Deus! Que tristeza carrega no coração esta criancinha?”. O fradinho baixinho interrompe a baboseira sentimentaloide. Dá um cascudo na criancinha, que imediatamente abre o berreiro. “Quando acabar de doer”, diz o baixinho em sua pedagogia incorreta, “ela já terá esquecido a tristeza”.
            Descansem em paz todos eles e mais agora os cartunistas franceses massacrados na reunião de pauta. Sugiro que se escreva na lápide de cada um o que Ivan Lessa pediu para a sua. Nada de “aqui jaz” – mas um perseverante e redondíssimo “aqui, ó!”. 

Comentários

  1. Joaquim, não existe neutralidade do intelectual. Ou você está contra ou a favor. E, o mais triste do seu texto, é fazer vista-grossa para o fascismo reinante na conjuntura mundial, tanto no oriente como ocidente. Evitar o debate é fugir da ráia " Antonio Cabral Filho - RJ ... Acesse: http://antoniocabralfilho.blogspot.com.br/2015/01/cronica-dos-tempos-modernos-antonio.html

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