Tem o Charlie francês, este que
agora todos nós somos, mas eu sou também Ivan Lessa (1935/2012) e tenho certeza
que ele só não teve destino igual aos colegas do Charlie Hebdo porque a redação
do Pasquim, o jornal de onde atirava contra tudo que mexia, estava no alto da
ladeira da Saint-Roman, acesso ao Pavão Pavãozinho de antes da UPP. A
bandidagem grassava ao redor. Ninguém seria bobo de subir até ali e, amuado
porque na edição passada o humorista levantara a burca de sua mulher, tentar
alguma desgraça contra as graças de Ivan. Ainda não havia essa discussão sobre
os limites para a correção do humor. Pelo contrário, só valia o que era
incorreto:
“Brasileiro
não estaciona carro. É retirado das ferragens”.
“No Nordeste,
cada vez que um flagelado exala o último suspiro, alguém imediatamente o acusa
de repetir em vão frases feitas”.
“Três em
cada cinco índios são, cada vez mais, um só. Os outros dois também”.
Eu sou Charlie, sou Ivan, e
também o Barão de Itararé (1895-1971). Ele foi aporrinhado tantas vezes pelos
muçulmanos de sua época, a polícia política de Vargas, que diante das
constantes visitas dos meganhas deixou um aviso na porta do escritório:
“Entre sem
bater”.
Os
católicos também não levavam vida melhor com o Barão:
“Quem
empresta, adeus”.
“A alma
humana, como os bolsos da batina de padre, tem mistérios insondáveis”.
Os grandes
humoristas brasileiros poderiam estar na reunião de pauta da Charlie Hebdo,
afiando seus lápis para na próxima edição redesenhar a Humanidade e, quem sabe,
torná-la menos hipócrita, sagrada e arrogante. Há um formidável histórico de
Charlies nacionais, humoristas que ampliaram os limites da liberdade de
expressão e pagaram o preço cobrado pelas tiranias de cada época.
Eu sou Jaguar, trancafiado
durante dois meses na Vila Militar. Eu sou Ziraldo com a faca espetada no peito
e a frase síntese dessa turma: “Só dói quando eu rio”. Eu sou Stanislaw Ponte
Preta esfregando o festival de besteira que assolava o país na cara dos
militares e morrendo do coração antes de sofrer as conseqüências.
Eu sou muitos e também Antonio
Maria (1921/1964). Mais conhecido por suas canções passionais, o gordo foi
humorista extraordinário em imprensa, rádio e TV. Os militares, os religiosos,
a mulher amada, todos eram alvo de seu humor fino, com muito estilo e completo
desinteresse pelos bons modos:
“Gente má dorme em posição de
sentido”.
“Só existe uma semana santa, nas
outras vocês matem quem quiser”.
“A mulher pode não ter muita
vergonha nos outros lugares, mas na cara tem”.
O playboy Baby Pignatari não
gostou de uma piada que Maria publicou na Ultima Hora e, numa briga na boate
Sacha’s, ameaçou quebrar-lhe os dedos da mão. Dizia que era para ele, assim,
parar de escrever.
“Eu escrevo com a cabeça, seu
idiota”, revidou o Menino Grande – e revidou a pancadaria.
Eu sou Millôr (1923/2012), aquele
que disse “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Ele abriu
a revista Pif-Paf em plena ditadura militar e foi obrigado a fechá-la oito
números depois. Não era de esquerda, nem de direita – era do contra:
“A Nova
República é apenas o cadáver da velha. Vê-se pelos vermes”.
“Cada um
carrega a sua cruz. Ainda bem que eu não sou religioso. Deve ter alguém por aí
carregando duas”.
“Só quem
tem uma casa, mulher e filhos, um verdadeiro lar, pode experimentar a
extraordinária paz e felicidade que é um dia se livrar de tudo isso”.
Hoje, leia
na minha camisa, eu sou Charlie, movido pelas circunstâncias e a facilidade de,
através de uma frase simples, mostrar os perigos do obscurantismo. “Je suis
Charlie”, para quem não fala francês, quer dizer eu sou a vela que não se
deixará apagar pela violência.
Eu sou o humorista francês morto,
sou Wolinski e mais os outros. Mas sou ainda Chico Caruso, Fortuna, Redi,
Vilmar, Claudius, e a memória de tanto brasileiros que sofreram as violências
mais diversas pelo direito de se expressar.
Eu sou Henfil (1944/1988), por
exemplo, tantas vezes carimbado com o “Proibido” dos censores por ter colocado
o caboclo mamadô chupando o cérebro dos reacionários. Ele não era de um lado nem
do outro. Queria anarquizar o coreto. Sua manifestação mais clara disso foram
as desventuras dos fradinhos. Numa delas, o fradinho comprido, penalizado
diante de uma criança, diz “Meu Deus! Que tristeza carrega no coração esta
criancinha?”. O fradinho baixinho interrompe a baboseira sentimentaloide. Dá um
cascudo na criancinha, que imediatamente abre o berreiro. “Quando acabar de
doer”, diz o baixinho em sua pedagogia incorreta, “ela já terá esquecido a
tristeza”.
Descansem
em paz todos eles e mais agora os cartunistas franceses massacrados na reunião
de pauta. Sugiro que se escreva na lápide de cada um o que Ivan Lessa pediu
para a sua. Nada de “aqui jaz” – mas um perseverante e redondíssimo “aqui, ó!”.
Joaquim, não existe neutralidade do intelectual. Ou você está contra ou a favor. E, o mais triste do seu texto, é fazer vista-grossa para o fascismo reinante na conjuntura mundial, tanto no oriente como ocidente. Evitar o debate é fugir da ráia " Antonio Cabral Filho - RJ ... Acesse: http://antoniocabralfilho.blogspot.com.br/2015/01/cronica-dos-tempos-modernos-antonio.html
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