Ultimamente têm passado muitos
anos, todos mais rápidos dos que os que lhes foram anteriores. Este que agora
se põe atrás dos Dois Irmãos também já se faz ido, coitado, cheio de pressa e fatos
que os jornais retrospectam como fundamentais para a história do planeta.
Houve a reaproximação dos EUA com
Cuba e a invenção do braço mecânico para o aperfeiçoamento do selfie. O Papa abençoou
os gays na celebração católica e os táxis deixaram de ser chamados pelo dedo vulgar
no meio da rua, atendendo agora a uma pressão elegante na tela do celular.
Nada contra a imponência de 2014,
mas sou súdito de um antigo poeta, sempre na contramão das grandiloquências.
Ele escreveu “Feliz é o homem sem notícia”. Falava do cidadão que, a todo
cumprimento de “como vão as coisas?”, respondia “tudo velho, meu caro”. Penso nele
quando balanço o ano. O presidente Xi Jinping avançou a economia chinesa? Parabéns,
mas as pequenas felicidades escondidas nas desacontecências de 2014 me foram
mais importantes.
É o ponto zero jornalístico, a
ausência de exclamações, de notícias de morte, doenças, guerras. Não está
acontecendo nada, e você percebe que isso é bom. Um paraíso onde ninguém grita
“breaking news”, ninguém ouve as trombetas da edição extraordinária de “O seu
repórter Esso”. O desacontecimento relaxa o cenho franzido da espécie.
É a pauta que o repórter saiu
para cumprir e, maravilha!, não rolou porque a vida estava lá, em sua vocação
inicial de jardim bíblico, na felicidade ordeira de seguir o fluxo natural das
coisas. O repórter volta para a redação sem anotações, já que entre os seus
personagens nada de dramático havia a documentar.
Em meados de junho, por exemplo, estavam
todos com saúde, a casa limpa, e o menino de dois anos, diante do homem magro
que cantava canções de lobo mau, disse “deixa de bobeira, vovô!” – e todos
caíram na gargalhada, comentando como o moleque era esperto para a idade dele.
Em 2014, a sonda Curiosity pousou
em Marte, descobriu indícios de vida orgânica por lá, e isso foi considerado fato
marcante para a Humanidade. Pode ajudar a elucidar o mistério do “quem somos”,
“de onde viemos” e para onde afinal vai esse ônibus. Não desmereço tamanho êxito,
mas um eu-retrospectivo se faz de outras matérias.
Eu gostaria de ter olhado mais
para os céus, investigado como fazia na infância o formato de bichos escondidos
por trás do desenho das nuvens. Mesmo assim vi algo pessoalmente mais marcante
que todas as lagoas descobertas em Marte. Foi no final de setembro. A luz do
sol estava com uma suavidade alegre, as cores no registro certo que só o Kodachrome
permitia.
Foi então que os biguás no céu do
Leblon repetiram, por três dias seguidos, uma estupenda formação em arco-e-flecha
na direção do Corcovado. Havia tanta firmeza no desenho que a flecha de biguás,
disparada pelo arco de seus companheiros de voo, seria capaz de furar o coração
da montanha. Eu murmurei “que bonito!”. Lamentei apenas fulana não estar comigo
para compartilhar.
Os cientistas, homens sérios e
preocupados com as novidades, dirão, ora!, meu amigo!, isso ocorre desde os
primórdios. Eu não os desmentiria, pelo contrário. Agradeceria o argumento. O
voo dos biguás, essa desacontecência carioca, é um exemplo de que a Apple pode
ter lançado em 2014 um computador de pulso para reinventar o modo de se levar a
vida, mas uma retrospectiva pessoal é diferente da que sai no jornal. É feita
do afeto e conforto de velhas referências. A mesa esteve posta, o olfato
percebeu a dama da noite nas ladeiras do Jardim Botânico, a mulher amada
continuou amada e o pulso, livre de computadores, ainda pulsa.
A preservação dessas
trivialidades benignas é fundamental para a felicidade da nossa espécie. Quem
saiu às ruas em 2014 se sentiu em pânico por não reconhecer em volta o mundo de
sempre. A água acabou, os carros não andaram, as pessoas enlouqueceram. Por uma
questão de equilíbrio e direcionamento, elas sempre caminharam balançando os
braços. Agora andam com um deles levantado, apertando com a mão um telefone
contra a orelha. E gritam, e ouvem, e não querem saber de mais nada a não ser
estar online full-time. Perderam a linha.
Para 2015, eu sugiro a felicidade
pelo avesso. No auge da revolução dos jovens, nos anos 1960, Nelson Rodrigues
sugeriu: “Envelheçam!”. Hoje, na revolução do estresse, eu atualizo o verbo: Desaconteçam!
Comentários
Postar um comentário