O papo reto da gíria carioca (05/01/2015)




Se filosofar só presta em alemão, viver no verão, milgrau, só vestindo o sotaque carioca
Deu ruim, mermão! Das novas gírias cariocas eu ando mais por fora do que umbigo de vedete e sei pouco além das que abrem este parágrafo. São expressões que uso outrossim, outronão, na esperança de me fazer ainda leque, leleque, e com a torre de piolho cheia de ideias tentar não ficar assim tão matusalém, tão desenxabido, e me aproximar serelepe das novinhas.
Firmino? Beleza? Responsa?
Todo esse parangolé vernacular me advém de ter passado uns dias urubuservando uma edição caindo aos pedaços de “Geringonça carioca — Verbetes para um dicionário da gíria”, de 1922, assinada por Raul Pederneiras. Tropecei nela ali no mafuá de livro velho na saída do metrô da Carioca. Acabaram com os sebos da Tiradentes. Foi o que restou. Não encrespo. São os tempos. Chamei na xinxa o xerife da banca. Quanto? Um galo? Um duque? Uma quina? Uma perna?
De chofre, ele me olhou matreiro, como se eu fosse algum elo perdido entre o píssico, o matusquelo e o xarope. Depois, se fez cupincha. Ofereceu o que estava malocado por baixo dos panos, um “Dicionário dos marginais”, de Ariel Tacla, com apresentação de Carlos Lacerda, de 1968.
O homem não deu uma de passa pra trás. Não engrupiu, zero de xaveco. Pediu um peru. Pinguei-lhe mais um tamandaré de gurja, à guisa de elogio pela falta de treta. Ele disse é nóis, na truta — e eu saí sobraçando os alfarrábios, tirando xinfra. Desde então, nem aí se me passo por um parafuso a menos, a todos que abracei na passagem do ano, desejei um 2015 feliz às pamparras.
O Rio é cidade boa de ser vista (janeiro tem floração dos hibiscos no Jardim Botânico), de ser comida (experimente o jiló da Portuguesa, em Ramos) e também de ser ouvida.
É feito um músico. Tem o que acompanha a melodia escrita e o que toca de ouvido. O som do Rio é o português de ouvido, aquele que usa calção de banho nos verbos, despenteia a semântica de qualquer milonga erudita e sai arrastando a gramática com um chiado cuja pretensão está longe de emular sinfonias, mas simular o varre-varre de uma sandália havaiana. É brega parecer culto. Ao final desse banho de língua, a fala padrão da cidade passa longe da garganta do imortal da ABL. A voz média se parece mais com a da menina do Bonde das Popozudas.
Se filosofar só presta em alemão, viver no verão, milgrau, só vestindo o sotaque carioca para ser patrão.
Aos 450 anos, todas as etapas da cidade estão bem documentadas. Não param de sair livros com fotos do Rio antigo ou de receitas dos cardápios de botequins. Sobre a gíria, no entanto, boca de siri. E olha que, entre outras chaleiradas, em 1938, o primeiro e único Congresso da Língua Nacional, promovido por Mário de Andrade e a prefeitura de São Paulo, consagrou o sotaque carioca como o mais adequado para ser usado, entre outros ritos, no canto brasileiro.
Urge, então — para abalar e por fazer parte dos orgulhos da cidade — o registro atualizado das suas gírias. Se vai sair nos próximos dias um livro com fotos inéditas de Marc Ferrez, a prefeitura podia colocar texto na história desta efeméride e relançar, por exemplo, o clássico “Linguajar carioca”, de Antenor Nascentes. Corre-se o risco, abusando da maciota e do sapatinho típicos da espécie, que o histórico do palavreado carioca se perca ao torpor da maresia. O “deu ruim”, dado como novidade na abertura deste texto, já era. Se algo agora dá errado fala-se “moiô” — e, diante de quem lhe explique tal, não diga obrigado, mas “demorô”.
A língua da gíria mexe mais do que tchutchuca no quadradinho de oito. Bobeou, ela, a língua, dá um rolê de songamonga, diz fui!, e deixa todo o mundo falando como um vacilão, eterno marcador de toca. O mundo roda, a gíria gira, e é preciso registrar o movimento. Ou alguém com menos de 50 anos saberia decifrar, se é um convite para ralar ou chegar junto, a expressão “tá pensando que berimbau é gaita”?
Na “Geringonça” de Pederneiras, as gírias vinham dos negros-capoeiras, dos ciganos e da malandragem da Lapa. Mais adiante, os “marginais” no título do dicionário de Ariel são os presidiários, num tempo em que a língua secreta servia como código de segurança. Hoje as gírias são cartão-postal sonoro do Rio, exibidas como prova de cidadania pelos seus moradores. Elas se espalham pela sociedade, pega um, pega geral, mas o seu centro de renovação vem da cena funk.
A língua pode tudo, e alguém precisa, de tempos em tempos, anotá-la para as gerações futuras. Em 2015, antes que se percam, as novas gírias podem se trombar no grande bonde de palavras que é um dicionário. No tempo de Pederneiras, valente era sujeito-homem que mamava na onça e andava com mulatas chamadas roxinhas. Depois, no dicionário de Tacla, já era um ferrabraz.
Hoje, valente é tigrão e, cuidado, tem ciúmes de suas poderosas. Foi-se o tempo em que ele partia para cima de quem as olhasse aos gritos de “qualé, mermão?!”. Deu preguiça. O tigrão contraiu a língua, fez o papo mais reto ainda. Agora é só “coé?!”.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/papo-reto-14963317#ixzz3PSrDqOaE
© 1996 - 2015. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. 

Comentários