Água, água e mais água. É tudo o
que eu tenho a oferecer. Escrever o maior número de vezes a palavra mágica, na
certeza de que águas passadas não movem moinhos, mas podem, de tanto serem
sugeridas, sensibilizar os céus e fazer com que elas desabem sobre nós. E que
depois se faça o arco-íris. Que depois apareça, toda de branco, toda molhada e
despenteada, que maravilha!, a coisa linda que é o meu amor.
Eu gostaria de repetir a dança da
chuva, a coreografia provocativa dos cheyennes, tantas vezes vista nos filmes. Falta-me
o requebro. Temo também que o ridículo da cena faça o feitiço ir água abaixo.
Eu gostaria de subir aos ares, como um Santos Dumont tardio, bombardear as nuvens
com cloreto de sódio. Se não desse certo, pelo menos chegaria perto do ouvido
de São Pedro e, com piadas do tipo “afogar o ganso”, “molhar o biscoito”, faria
com que o santo relaxasse e abrisse as torneiras.
De nada disso, no entanto, sou
capaz. Fico aqui, no limite do meu oceano, jacaré no seco anda, escrevendo e
evocando as águas que passaram pela ponte da memória. Lembro, vizinha à minha
casa, na Vila da Penha dos rios transbordantes, a compositora Zilda do Zé, de
“As águas vão rolar”. A sua força ancestral, grande sambista, eu evoco agora,
mesmo sabendo que a letra da música se refere à água que passarinho não bebe.
Todas as águas devem ser provocadas
nesta imensa onda de pensamento positivo e eu agora molho reverente os pés do
balcão com o primeiro gole para o santo. Finjo-me pau d’água e sigo em frente.
Nem aí para os incréus, nem aí para os que zombam da fé, esses insensatos. A
todos peço que leiam na minha camisa e não desistam: “Água mole em pedra dura
tanto bate até que fura”.
Meses atrás, estive na comunidade
do Rato Molhado, entrevistando a empreendedora Celma Batista, ex-favelada, e
agora dona de uma videolocadora, de uma oficina de automóveis, de um salão de
beleza e de alguma outra coisa que ela deve ter inventado na semana passada. Se
rato seco é ruim, molhado é o capeta. Havia um monte ali. Foi onde aprendi o que
é dar nó em pingo d’água, reverter as expectativas e fazer chover na horta de
quem planta.
O Rato Molhado fica entre a
Tijuca e o Riachuelo, cracudos na secura por todos os lados, um lugar onde não
chove qualquer tipo de água ou consideração municipal desde antes do toró bíblico.
Mas mesmo ali tem sempre quem acredita na mudança dos ventos e na chegada salvadora
das águas de março. Deve ter sido por isso, fé em Deus e pé na água, que alguém
grafitou próximo a um dos comércios de Celma a esperança de um “Não cei o que fasso nessa vida de kime”.
Isto aqui que hoje se escreve também
se pretende mais um grafite do que uma crônica. Talvez uma oração aos deuses da
chuva para que ela, refrescando a memória, se faça como nos bons tempos. Abundante.
Inclemente. As pessoas botavam água na fervura, água no chope. Era tanto clichê
líquido, tinha até água de batata para rotular um café fraco, que ninguém podia
supor um dia fazer tempestade em copo d’água pela falta dela.
O sonho acabou há tempo, e lá se
foi John Lennon morto. Agora chegou a nostalgia da água, de torcer pelo volume
morto e sentir saudade de ver um arco-íris emoldurando o Pão de Açúcar depois
da pancada de verão. Como explicar a uma criança que sol e chuva é casamento de
viúva? Como explicar a deliciosa aflição de dormir se perguntando, “será que
vai dar praia?”, se agora todo dia é dia de sol?
A propósito, eu li o grande poeta
sentado no banco da praia e sei que a sede é infinita, que na nossa secura de
amar é preciso buscar a água implícita, o beijo tácito – mas acho que é poesia
demais para uma hora dessas. Urge, como queria Benjor, que chova chuva.
Canivetes. Gatos e cachorros. Se Joseph Conrad traduziu a guerra com “o horror,
o horror, o horror”, chegou a vez de resumir o nosso tempo com “a seca, a seca,
a seca” – e bater os tambores na direção contrária. Saúdo para que se faça
nuvem, e a todos cubra com o seu divino manto líquido, a saudosa Maria, a santa
carioca que a incomparável Marlene viu subindo o morro com a lata d’água na
cabeça.
2015 promete ser terrível, mas há
quem ache bom negócio refletir sobre os valores básicos da sobrevivência, o que
o homem está fazendo com o meio ambiente. Vai ser o ano de valorizar como bem
de consumo insuperável não o Dior nº 5, mas o cheiro da terra molhada depois do
toró de fim de tarde. Que assim seja. Que se cumpra a felicidade de ouvir Tom
Jobim ao piano, tecla por tecla, gota a gota, celebrando a cena real de, lá
fora, estar chovendo na roseira.
Ah, quem me dera ligar o rádio e escutar
o formidável português ruim da edição extraordinária. Aumentar o som para deixar
o locutor gritar – os clichês boiando molhadinhos pelo tesão da notícia – que chove
a cântaros em todos os quadrantes da Cidade Maravilhosa.
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