Fim do mundo (09/02/2015)

Imagem Steve McGhee
Imagem Steve McGhee
Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar e o Rio, depois de 450 anos como a cidade mais bonita do mundo, seria agora a mais trágica, varrida do mapa por um ciclone justiceiro, uma nova espécie de juízo final com ventos de 300 km por hora. Seria um terror assoprado por um bode com cavanhaque de nuvens negras. Ele a tudo arrastaria para bem depois da Floresta da Tijuca e a tudo lá deixaria, insepulto, miseravelmente mais estropiado do que já estava sob o comando dos doutos municipais.
Ainda não foi dessa vez que o mundo acabou como em cena de filme catástrofe, mas, olhando em volta, alguém duvida? A sensação térmica é a de que só se esqueceram de oficializar. O mundo, pelo menos o que se conhecia como tal, já era faz tempo.
Na tragédia anunciada, depois que nada mais restasse respirando, os cabeções de Zumbi e Vargas com suas bocas escancaradas de pavor, tudo seria afogado por uma segunda carga da cavalaria de horrores. Desta vez uma tempestade traria em seu bojo o acúmulo de toda a água não despejada nos últimos meses, um vômito de granizo, raios e demais descalabros climatológicos que a garota do tempo do Jornal Nacional não teria condições de colocar no vídeo, tamanho o desfile de tsunamis, tornados e redemoinhos previstos para o nosso ponto final.
Um mundo acaba de muitas maneiras, com uma temporada de seca, um 7 a 1, um presidente da Petrobras pior que o anterior, o Eike na miséria. De um jeito ou de outro, este que ora habitamos, engarrafados no táxi, está nos estertores. Espera-se apenas o susto decisivo.
Anunciaram e garantiram que desta vez o fim do mundo viria numa cornucópia bestial de raios com trovões. Eles incidiriam em toda a fileira de antenas sobre os morros em volta da cidade. Dali, comandados pela virulência quilowáttica da torre do Sumaré, seriam retransmitidos, como choque, para os que estivessem com as televisões ligadas na Globonews, procurando notícias sobre a catadupa final. Este holocausto climatológico, parecido com o que Rubem Braga previu em “Ai de ti, Copacabana”, colocaria no comando desta municipalidade pecadora as arraias das águas escuras e o encrespado furioso das ondas. A tromba d’água levaria Iemanjá e o Capitão Nemo ao trono do Palácio Laranjeiras.
O mar do Atlântico tomaria as ruas do Leblon, devolveria na boca de quem de direito toda a sujeira dos sacos de plástico do Zona Sul e dos sofás jogados no canal da Rua Visconde de Albuquerque. Suas águas encheriam as garagens subterrâneas dos condomínios da Barra da Tijuca, transformando-as em aquários imundos, de onde subiriam às avenidas polvos em polvorosa, gosmentos e violentamente erotizados, abraçando as últimas virgens sobreviventes ao carnaval de intempéries.
Nada disso houve, na semana passada, mas mesmo os que sobreviveram ao desacontecimento sabem. Não há o que comemorar. Se não acabou ainda, o fim é próximo, a inflação galopa a besta do apocalipse, e o resto pode ficar por conta das multidões se pisoteando no verão de Ipanema.
Os dias estão contados e a qualquer momento, sem edição extraordinária, pois é o esperado por todos, dar-se-á a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. A natureza se fará presente e o refluxo ácido de sua bílis contrariada vai passar sobre a Torre do Rio Sul, os bufês dos chefs estrelados, as alas dos barões famintos, o bloco dos napoleões retintos e demais agremiações do grande sambódromo de malfeitos da cidade marcada.
Na última vez que anunciaram o fim do mundo, Carmen Miranda se desfez da vaidade de seus balangandãs e foi para as ruas, onde beijou a boca de quem não devia, dançou um samba em trajes de maiô – mas o tal do mundo não se acabou. Agora, proclamado oficialmente no Rio, o fim do mundo desmentiu as autoridades, pessoas que numa última exibição de soberba tentaram prever a chegada furiosa do juízo final, e agora, coitadas, terão mais um pecado a pagar diante do tribunal de cobras d’água, águas-vivas e meros saídos das águas empesteadas pelo óleo da Baía.
O fim está próximo, se é que já não aconteceu, e não serão as sirenes da Defesa Civil, muito menos o prefeito, que terão a exclusividade de anunciar o dia deste último evento da cidade turística. Qualquer pessoa que ande na rua ou fique trancada no Facebook sabe, e não poderá reclamar. Todos os sinais foram dados e por isso será negado o direito de, diante do juiz supremo, obtemperar que o dilúvio se fez traiçoeiro ao derramar a lama dos morros sobre cada um de nós. Acabou. Pode ser hoje, se é que já não foi ontem. Talvez amanhã. Pode ser no domingo de carnaval, quando a bateria der a sua famosa paradinha – e não tiver tempo de recomeçar.

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