Balança, Jorge (20/04/2015)

O primeiro deles foi São Jorge, a quem agora e desde já se cumprimenta respeitosamente pelo seu dia. Saravá, Ogum! O que está mais na moda é Seu Jorge, a quem se rende homenagem pelo recente “Churrasco II”. Carne de primeira!

Aquele de quem se quer falar aqui com mais vagar, embora sua música seja acelerada, é o que veio entre eles, Jorge Ben, pastor primeiro de um ritmo com o mais divertido sotaque carioca. Ele foi o Jorge saído das esquinas da Tijuca. Protegido pelas armas do xará da Capadócia, enfrentou os preconceitos que também musicalmente deixaram a cidade partida.

O sambalanço primitivo da Zona Norte de Jorge Ben botou a bossa nova intelectual da Zona Sul para dançar.

Os bacanas de Copacabana, e era onde moravam os finos da época, no início dos anos 1960, consideravam o sambalanço uma bossa nova reduzida, uma versão facilitada para suburbanos. Não desafinava, não fazia clima para se ver o Corcovado, o Redentor, que lindos. Serviria apenas para animar bailes das normalistas no Instituto de Educação e fazer com que seus coraçõezinhos juvenis batessem mais acelerados ao dançar juntinho com os espadaúdos cadetes do Colégio Militar.

De resto, música sem a complexidade politicoexistencial que os tempos exigiam. A bossa nova já estava cansada do amor, do sorriso e da flor, tentava naquele início da década se conscientizar, falando do morro morando de frente para o mar. O sambalanço preferia fazer “Bolinha de sabão”, como no sucesso de Sonia Delfino, ou marcar o ritmo com um molho de chaves, como Orlandivo. Queria festejar, arrastar a sandália — e na época as garotas bacanas da Zona Sul não podiam imaginar que um dia todas estariam fazendo o mesmo, arrastando suas havaianas pelas esquinas do mundo.

Tudo isso só está sendo dito por que esta é a semana de Jorge e, num plus a mais para justificar a crônica, uma das novas garotas da Zona Sul, a cantora Clara Moreno, está lançando um CD em que regrava todas as 12 músicas do primeiro LP de Ben, futuro Benjor, o mitológico “Samba esquema novo”, de 1963. É a bíblia do sambalanço, música carioca em sua mais completa e sacudida tradução.

Enquanto a bossa nova curtia a influência do jazz, o negro tijucano vinha com tambores de alguma nação do seu inconsciente africano e mais um violão inspirado nos acordes básicos do rock. Ao fundo, metais de gafieira. Entre os dois gêneros, algumas semelhanças, muitas diferenças. A bossa era de apartamento. O sambalanço de Benjor, tribal. “Sai da minha frente que eu quero passar”, dizia “Mas que nada”, a primeira frase da primeira música do LP, e foi o que a bossa nova fez. Aproveitou para se transformar — e aí vieram os afro-sambas de Baden-Vinicius e o namoro de Nara Leão com os sambistas de morro.

O delicioso disco de Clara Moreno confirma para as novas gerações o que os críticos nem sempre tiveram a coragem de dizer. A música brasileira nunca mais seria a mesma. Depois da fossa do samba-canção, depois da placidez do barquinho no vem e vai da tarde que cai, ela voltava a ser alegre — esse patrimônio que os críticos julgavam pouco sério. “Balança a pema”, pede a segunda música do “Samba esquema novo” – sendo que a tal “pema” tanto pode ser um rabo de peixe como um dialeto para o órgão sexual masculino. Se uma coisa ou outra, esqueça. O importante era conjugar o verbo “balançar” em todos os seus tempos e possibilidades. Sem preconceito.

A turma do sambalanço comandada por Jorge Ben — e mais Ed Lincoln, Wilson Simonal, Dóris Monteiro, Walter Wanderley, João Roberto Kelly, Orlandivo, Elza Soares — estava mais disposta a se divertir, dançar e coxear o próximo do que mudar os rumos de qualquer coisa. Não era um movimento, mas um baile de exaltação à felicidade de estar vivo e poder balançar não só a pema, mas o esqueleto todo. Zero de pose, dúzias de prazer. “É a ordem do rei que acabou de chegar”, cantava Pedrinho Rodrigues, crooner de Ed Lincoln.

A turma queria da vida apenas que tudo fosse como a pista de dança do Mello Tênis Clube, na Vila Kosmos, uma brincadeira regada com música e a maravilhosa oportunidade de se colocar a mão nos quadris de alguém. O pessoal da bossa nova buscava o aconchego elegante do eu, você, um uisquinho, num terraço a beira-mar. Muito lero-lero para se chegar lá. O sambalanço ia direto ao assunto: “Que bonito é um corpo de mulher dançar”, dizia “Apito no samba”, de Luiz Antônio e Luiz Bandeira, um dos hinos de uma coleção que ainda hoje mantém frescor moderno e repercute no mundo inteiro.

Foi a verdadeira, mais do que a de 1930, década de ouro da MPB — e ainda viriam a música de protesto, dos festivais, a Jovem Guarda e o Tropicalismo. João Gilberto cantava bossa nova, Miltinho, o sambalanço. O piano de Tom Jobim harmonizava a primeira, o de Djalma Ferreira sacolejava a segunda. O poeta-embaixador Vinicius de Moraes letrava a passagem da “Garota de Ipanema” como a coisa mais linda, mais cheia de graça e de boa literatura. Jorge Ben, colegial incompleto, tinha sua musa na esquina de Haddock Lobo com Matoso. Escrevia sobre ela. Fazia-se meio criança, meio preto velho. Chamava-a, primitivamente na chincha, de “Voxê” — e depois iam balançar, que a vida é muito curta.

Comentários

  1. Jorge Bem para os brasileiros,o Benjor fica para os americanos não a confundirem com o Benson.

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