Zé Feinho (30/03/2015)

                        
Quando perguntaram a Jessica Rabbit, dentro do vestido vermelho que lhe atochava a alma e evidenciava as curvas, o que ela fazia, gostosa daquele jeito, com um sujeito lamentavelmente feio como o coelho Roger Rabbit, a bela foi sincera:
“É que ele me faz rir”.
            Zé Bonitinho, morto semana passada, de bonitinho não tinha nada, mas sabia que mulheres se movem por outras vias, não necessariamente as do trânsito monótono da correção estética. Podem se entusiasmar com Marlon Teixeira, namorado da Bruna Marquezine, eleito semana passada um dos modelos mais bonitos do mundo – mas não estão fechadas a outras propostas de sedução. Sabem que beleza é nuvem passageira. Não põe mesa, não revira a cama. Se, a princípio, enche os olhos, costuma desobrigar o macho bem apessoado de pôr um sorriso na boca delas – e deixar de curtir a dois a delícia de morrer de tanto rir depois do cacófato infantil. 
            Zé Bonitinho carregava uma profusão de despropósitos estéticos, um topete três vezes maior que o rosto, mas inventava efeitos irresistíveis para esconder esses dissabores. Cantava boleros com uma voz que julgava ser a do Bievenido Granda ou dizia disparates como “atentem para o tilintar das minhas sobrancelhas”. Uma atrás da outra, elas se deixavam entreter, curiosas, na ânsia louca do que a todas é comum: experimentar o que na vida vai além do palpável e vibra pela força de imaginação.   
            É dura a vida do homem feio no empenho diuturno de se adornar de alguma magnificência estética. Eu conheço um que procura as palavras mais retumbantes do seu vocabulário, tenta ordená-las com os efeitos líricos da língua, tudo na esperança de ser percebido não como é, narigudo, mas um louro espadaúdo, quase um viking sueco e de olhos azuis. Publica tudo num jornal da capital e espera o resultado. Dá trabalho.
O compositor e jornalista Antonio Maria, um dos mais sedutores de todos os homens mal ajambrados, vítima da arte final do Criador, morria de inveja de um amigo bonito. Ao tal sujeito bastava o ato de botar a cara na vitrine e em seguida escolher uma, ou duas, ou três, entre as várias mulheres prontamente interessadas. A ele, Maria, gordo, pele oleosa, era preciso o esforço de passar três horas conversando com uma moça para que ela lhe esquecesse o conjunto de disparates, mais a barriga em dobras, e se dispusesse então a algum projeto, pela noite adentro, de busca da felicidade conjunta.
Um dia eu perguntei a Danuza Leão, a mais bonita e moderna mulher do Rio de Janeiro no início dos anos 1960, o mesmo que perguntaram a Jessica Rabbit. Por que ela, modelo de Jacques Fath, casou-se em 1961 com Antonio Maria, um homem que segurava as calças com barbante. Danuza me foi também sincera:
“Ele prestava atenção no que eu estava falando”.
O forte de todos esses homens feios é colocar a mulher no centro do mundo. Deixá-la imaginar, como deve ter feito Woody Allen com Mia Farrow, Serge Gainsbourg com Brigitte Bardot, que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. É um samba a ser conversado a dois, com sensibilidade, e transformado numa coisa tão íntima, num abraço de conchinha tão suave no meio da noite escura, que só eles são capazes de perceber a química desse código de delicadezas.
Dizem que homens são mais visuais, dão prioridade a paixões com glúteos bem torneados. Mulheres, embora dispostas a oferecer uma imediata primeira chance a Chay Suede, costumam se impressionar depois, no desenrolar do jogo, com a intensidade das emoções envolvidas. Deve ter sido aí que o assombroso Lyle Lovett venceu todos os galãs de Hollywood e ficou com a Julia Roberts.  
Sem músculos, sem lábios carnudos, olhos verdes ou qualquer outro atributo físico que o coloque dois passos à frente da multidão de concorrentes, diante da mulher pretendida um homem esteticamente desparagonado traça no ar um perfil de qualidades etéreas. Redesenha-se. Roger Rabbit fazia rir, Antonio Maria ouvia, Zé Bonitinho cantava e Aristóteles Onassis, para a passagem de Jackie O, desenrolava um tapete de dólares. Cada um sabe o tamanho dos trunfos e tenta fazer com que esses dons fiquem evidentes, charmes inesperados, e escondam os desacertos de sua paginação equivocada.
O humorista Zé Trindade, por exemplo, de uma geração anterior à do Zé Bonitinho, era mais um Zé Feinho. Baixinho, sem pescoço, desgracioso pela própria natureza. Poderia ficar no canto da tela, maldizendo a natureza e os privilégios estéticos concedidos pelo Divino a Cyll Farney, o galã das chanchadas. No entanto, ia à luta. Fazia o prestativo, tentava umas piadas de almanaque, tudo que escondesse o bigodinho mal desenhado. Acima de tudo, interessava-se pelas mulheres.
“O negócio é perguntar pela Maria”, dizia.
Em alguns filmes, depois de conquistar a mocinha, ele precisava responder ao incrédulo Cyll Farney. Como, sendo tão feio, conseguira ficar com uma mulher tão bonita? Zé Trindade não abria o jogo. Fazia-se charmosamente vago: “É que eu tenho borogodó”.

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