Aura dálmata - I (04/05/2015)

Era uma senhora branca, um tanto gordota, ar enigmático de velhinha de filme do Hitchcock. Podia ser a vilã ou a personagem que mais adiante decifraria a trama, mas ainda era cedo para dizer. Num carro parado ao lado do meu, num sinal em Botafogo, ela buzinava. Pedia com um movimento de mão para eu abaixar o vidro da janela.

“Eu estava vendo a sua aura”, ela disse, com ar cotidiano. “O senhor está com um problema de saúde, não está?”

Depois de uma certa idade é enorme a possibilidade de um homem carregar um problema de saúde. Felizmente não era o caso. Todos os sinais vitais estavam preservados. Num hemograma recente o colesterol bom conversava com o colesterol ruim em completa harmonia.

Depois de uma certa idade também é enorme a possibilidade de um homem já ter visto de tudo nessa vida e não se impressionar com mais nada, sequer com o fato de ter a aura publicamente desnudada. Felizmente também não era o caso. Eu sou jornalista. Vivo disso. Não posso perder a capacidade de me espantar. E aquilo era absolutamente incrível, fantástico e extraordinário. Uma velhinha misteriosa, a despeito do vidro fumê que nos separava, tinha visto a minha aura problemática estacionada num sinal da Rua São Clemente. Como ela conseguia?

“Eu sou vidente”, respondeu, sempre trivial, agora mexendo as rugas do rosto como se quisesse focar melhor e finalizar o diagnóstico das suas lentes paranormais. “O senhor tem uma aura branca, mas ela está com manchas escuras.”

Auras nos programas de TV vêm sempre com luzes multicores. A minha, branca com manchas escuras, parecia a descrição de um dálmata. Seria meu anjo da guarda um cachorro rebelde fugido da matilha dos 101 explorados pela Disney?

Nada disso, no entanto, obtemperei contra a vidência da senhora. Fiz o educado. Balbuciei um “sei” bege, tentando emular uma preocupação respeitosa com o diagnóstico inesperado de seu raio-x esotérico. Não aparentei mofa no canto direito dos lábios, nem esgar que denunciasse meu ceticismo. Se eu quisesse, me informou, ela erradicaria da aura as tais manchas.

“Faço de graça”, sorriu, como se fosse promoção de supermercado do bairro.

Antes de o sinal abrir, antes que o carro de trás buzinasse para apressar minha aura paralisada, ela ofereceu um cartão. Estava escrito em dourado: Madame Letícia.

O primeiro capítulo poderia acabar aqui, o Fiat dela seguindo o fluxo do trânsito, e a música de fundo anunciando a elucidação do mistério inicial. Não era a velhinha de Hitchcock. A protagonista da cena era uma das carioquíssimas mulheres que até o ano passado anunciavam nos postes os seus milagres curiosos. Elas recuperavam safras perdidas, tiravam olho grande e traziam de volta a pessoa amada em três dias.

A prefeitura, essa senhora descrente, moveu uma caçada terrível a Madame Letícia e suas colegas. Aplicou-lhes multas pesadas pela sujeira — e elas ficaram sem um meio de comunicação com os que sofriam a perda de um grande amor ou, como parecia ser o meu caso, os prejuízos sobre a saúde de uma aura cheia de manchas.

Sem poste para pregar suas conclamações em prol do bem-estar da Humanidade, proibidas também de espalhar pelas esquinas os seus panfletos de bom texto, cheios de verbos e sem vírgulas, as videntes de Botafogo mudavam o marketing. Aproveitavam-se dos engarrafamentos para divulgar, de boca, no olho do freguês, os seus serviços — e duas amigas me confirmariam terem tido a mesma abordagem na Voluntários da Pátria.

Desta vez, não sujavam a barra. No máximo aproveitavam-se do desespero alheio, da necessidade humana de acreditar que a vida não pode ser só isso. É muito pouco ficar trancado o dia inteiro dentro de um prédio, se estressando com o que não lhe diz respeito, depois voltar para casa, comer, chorar, dormir, e no dia seguinte recomeçar a carnificina, com você no papel da carne. É justa a necessidade de se acreditar em algum mistério.

Eu, também cansado da vida real, descrente das fadas, resolvi visitar o lava-a-jato de aura de Madame Letícia, uma casa de dois andares numa vila de Botafogo. A princípio, não creio em bruxas, mas, como dizia, vivo do espanto das novidades. Queria anunciar em primeira mão a existência de uma delas.

Madame Letícia apareceu atrás das grades da janela da sala, e a primeira impressão que tive foi a de ela ter perdido, 24 horas depois de me revelar a aura dálmata, o poder de vidente. Suspeitou que eu estivesse armado, mas queria confirmar com o olhar comum. Pediu que eu, ainda no meio da rua, “não é desconfiança, é ritual”, fizesse o sinal da cruz com a barra da camisa levantada, deixando à mostra a cintura da calça.

“A minha aura está desarmada”, brinquei.

Madame Letícia não estava para brincadeira.

“Se estivesse armada, o rottweiler e o pitbull que eu tenho no porão já estariam aqui cuidando dela.”

Se a aura estava mesmo manchada, eu não sei. Naquele momento senti que ela tremeu, apavorada. Mas era tarde — e entramos juntos no castelo da bruxa. (Continua)

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