Aura dálmata - II (11/05/2015)

No capítulo anterior, Madame Letícia viu estacionada dentro de um carro num engarrafamento em Botafogo a aura branca cheia de manchas escuras, praticamente um dálmata, deste cronista cético. Prontificou-se a fazer um lava-a-jato espiritual que a deixaria branquinha. Agora, em sua casa, numa vila no mesmo bairro, ela vai começar o ritual.

“São cem reais”, foram suas primeiras palavras ao se sentar diante de uma mesa com dezenas de santos de diversas religiões e mais oferendas, lâmpadas, velas, búzios.

“Mas não era grátis?!”

“Isso servia só para ontem!”

Seguiu-se uma longa negociação, que deve ter deixado a aura agora manchada de rubor. Acertou-se o trabalho por R$ 90, e imediatamente as cartas do tarô começam a ser cortadas. Madame Letícia parecia já ter esquecido que o problema era com a aura. Aproveitei para pedir que ela desse uma geral no que me ia pela vida.

“Em nome de Deus, de todos os santos aqui presentes”, começou, “eu digo que você é boa pessoa. Você é lutador e o melhor lucro é o do seu trabalho, da sua inteligência e da sua dedicação, porque o seu núcleo familiar não teve sorte nos lucros. Você é estimado pela família e dedicado a ela, graças a Deus. O que você tem é seu, mas o que entra por uma das mãos escorre fácil pela outra. Estou errada? É isso mesmo?”

João Gilberto gravou um clássico da MPB, “Pra que discutir com madame”, e, ali numa sala escura de Botafogo, quem era eu para desmentir Madame Letícia no seu tom de voz cada vez mais autoritário e amedrontador? Em todo momento que ela me pedia a confirmação de alguma de suas interpretações do tarô, eu dizia sim, ela estava certíssima. Do andar de baixo da casa, vinha o som de um rádio ligado num programa de debates populares, o que contrariou o humor da vidente a ponto de ela interromper a leitura do meu destino para praguejar contra os que estavam fazendo aquilo.

O ambiente era escuro, sufocante. Antes de continuar com o que via nas cartas, Madame Letícia levanta-se para ligar o ar-condicionado nas minhas costas. Eu aproveito para dar nova dica. Digo brincalhão que “vou ficar com a aura resfriada”, e ela segue:

“Graças a Deus não lhe falta a comida e nem a bebida. O que falta é paz de espírito, o sossego da alma, é a tranquilidade espiritual. A sua zanga é o nervosismo, os nervos à flor da pele e a raiva passageira de um homem caprichoso. Você luta pelos seus direitos, mas é mal compreendido. Certo ou errado?”

Preciso admitir que não era a minha primeira vez diante das “mães” de Botafogo. Sempre me impressiona a capacidade, entra ano sai ano, anunciadas em poste ou no meio do engarrafamento, de elas repetirem mecanicamente o texto de suas vidências, como se tivessem decorado uma lição. Não expressam dúvidas sobre o que veem, nenhuma reticência ao analisar o que estaria posto ali nas cartas. As frases saem rápidas, como num rap composto há tempos. Fazem alguns elogios à índole do consulente, e depois seguem-se problemas em aberto para ele consertar. A impressão é que todas fizeram o mesmo curso de correspondência.

O tópico seguinte era fácil descobrir.

“Quem é essa mulher que eu estou vendo aqui?”

A música que me veio agora era um samba de Noel, meio marcha-rancho, aquele do “há tantas santas no mundo, que vivem fora do templo, santas de olhar tão profundo, você, por exemplo”. Mas definitivamente achei que a conversa não estava dando samba. Mulheres há muitas, de todos os tipos, filhas, irmãs, de todas as condições de relacionamento, embaralhadas no dia a dia da vida real. Eu gostaria que Madame estivesse vendo uma em especial e, a partir dela, me contasse o que eu precisava saber para não ter dúvidas quanto ao traçado do destino. Eu inventei um nome qualquer, um nome inexistente na minha agenda, porque já antevia o próximo passo.

“Ela gosta de você, você gosta dela, mas nada disso vai pra frente porque uma outra a quem você abandonou colocou seu nome na calunga, espetou com alfinete, enterrou no cemitério e, enquanto você não tirar esse boneco de lá, nada terá sucesso no amor, nem no trabalho, nem na família, e a sua vida vai ficar amarrada a ponto de perder a sua força de homem. Você quer isso? Você sabe do que eu estou falando, não é? Estou certa ou estou errada?”.

A vontade agora foi de incorporar um Jota Silvestre e, de olho na lente da câmera, fazer como o locutor do programa de perguntas da infância e gritar um “absolutamente errado”. Silenciei, no entanto. Eu não faria isso com madame alguma, muito menos com essas senhoras de Botafogo. Escorraçadas dos postes, elas tentam a sobrevivência seduzindo para suas sessões de magia a clientela desesperada com a vida real nos engarrafamentos do bairro. Acredita quem quiser. Eu ainda perguntei sobre a aura manchada. Madame Letícia me informou que fazia parte do pacote, e R$ 300 limpariam tudo e de todos os males eu estaria protegido. Agradeci. Fiquei com a proteção do dálmata.

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