A regra não é clara (06/07/2015)

São fatos realmente impressionantes, o do policial que pisa no bandido morto e o do político que manobra para votar, agora vitorioso, o mesmo projeto com que foi derrotado 12 horas antes. Mas o fato que na semana passada mais me marcou, no assustador elenco de acontecimentos que a todo dia comprova o mau momento da civilização pátria, foi o da cobrança do lateral.

Como todos sabemos, pois embutido na educação dos gens nacionais, bater o lateral é aquela jogada que numa partida de futebol se faz com as mãos, repondo a bola ao campo. Não há qualquer exigência de técnica. Atira-se, no imenso espaço verde à frente, o balão de couro de volta à competição. Na semana passada, dois profissionais do Flamengo ao baterem o lateral contra o Vasco conseguiram jogar a bola para fora de campo. Um deles o fez atirando-a praticamente para trás.

Temos poucos orgulhos. Nenhum prêmio Nobel, raras medalhas de ouro olímpico. A polícia nunca foi um orgulho e os políticos muito menos. O futebol era o grande livro, a universidade de onde nasciam os exemplos mais espetaculares de como se fazer com correção uma prática pautada pelo aperfeiçoamento de técnica, esforço, talento e respeito às leis. O futebol civilizou o Brasil. Deu o pontapé inicial para ele perceber, levantando taças em todos os cantos do mundo, como poderia ser a sua cara se as outras atividades jogassem junto.

Tem aquela música da Marina e do Antonio Cícero, que diz “Você me abre os seus braços e a gente faz um país”. O futebol ajudou a construir a honradez nacional cada vez que Gerson, do meio de campo, dava um passe e a bola caía amortecida 40 metros adiante no peito de Pelé. Era a nossa maneira de fazer arte e melhorar a existência neste planeta hostil. Na semana passada, a propósito, morreu um ex-companheiro de Gerson no Flamengo do início da década de 1960. Chamava-se Carlinhos, jogava o fino. Do meio de campo orquestrava todo o conjunto com tamanha harmonia que foi apelidado “Violino”. O futebol estava para o Brasil como uma filarmônica para o europeu — e só os muito tolos podiam dizer que uma arte era superior a outra.

O futebol, debaixo da democracia de JK ou da ditadura dos militares, não tinha nada a ver com o que se passava fora das quatro linhas. Era uma pátria a parte, mais organizada, uma nação de gênios sofisticados que pautava seu show pelos princípios da educação e dos bons modos esportivos. A verdadeira pátria educadora.

A esperança era que dali surgisse um projeto nacional — Niemeyer com o concreto armado em curva, João Gilberto com a falsa desafinação e Glauber com uma ideia na cabeça e a câmera na mão fariam o resto. Podia parecer pretensão para uma simples partida de futebol, mas no final daria certo se cada um fizesse a sua parte e tentasse manejar da melhor maneira possível a régua e o compasso que lhe couberam. Havia mestres aos montes. O porte de Didi fez com que o colunista social Ibrahim Sued o elegesse um dos homens mais elegantes do seu tempo. O lateral esquerdo Nilton Santos sabia tanto da matéria que seu apelido era “Enciclopédia”.

Na semana passada, quando os jogadores do Flamengo mandaram a bola do lateral de novo para fora de campo, qualquer um pôde perceber que não era só o Congresso Nacional ou a Delegacia Policial da esquina — o campo de futebol, o templo sagrado da esperança brasileira, tinha sido finalmente invadido pela grosseria geral. Foi neste jogo que o comentarista Lédio Carmona recomendou a inclusão de uma nova estatística além daquelas tradicionais, de chutes a gol, faltas etc. Ele sugeriu, impressionado com a estupidez com que os jogadores dos dois times botinavam a bola, o mais baixo estágio de compreensão da delicadeza intrínseca ao bom jogo, que se fizesse também a contagem dos bicões para o alto.

O futebol parecia ao brasileiro a luz no fim do túnel, aquele laboratório de experiências cívicas por onde a boçalidade dos políticos, a arrogância da classe média no volante de seus carros e a grosseria assustadora das ruas não passariam. Parecia uma cidadela inexpugnável, segura a qualquer invasão da barbárie lá de fora. A redenção nacional viria do gramado, não do plenário, do palácio ou dos gabinetes das estatais. Mas o que se viu na semana passada — com a cobrança dos laterais mais a eliminação do Brasil da Copa América, os corruptos da CBF e os jogos espantosos do Brasileirão — foi um pesadelo. O noticiário político e o do futebol se aproximaram. O Eduardo Cunha lá, o Dunga cá — e, novamente, só os muito tolos diriam que um é superior ao outro.

O futebol, que contaminaria o resto do país com sua arte delicada, foi finalmente adoentado pela mesma virulência primitiva de todo o resto. Os jogadores não fazem mais faltas, mas agressões criminosas. O que os pivetes cometem na rua com facas, eles fazem com as chuteiras. De tão banalizada a selvageria, tornou-se complacente o olhar dos críticos. Da cabine de transmissão, diante do pontapé com que os botocudos baixam o sarrafo em campo, os comentaristas de arbitragem cada vez mais gritam a absolvição do “lance normal, segue o jogo”.

O Brasil, agora também no futebol, virou um pau-puro generalizado, todo mundo dando carrinho por trás em todo mundo e abusando da mais escrota cafajestagem. A regra não é mais clara. Os jogadores, da mesma maneira que os deputados na ordem constitucional, dão peitadas nos juízes e, lance normal, o jogo segue com a mesma grossura de todo o resto. É o balanço da semana. Não há mais pão, e o circo virou um espetáculo de puro horror.

Comentários