Cantores vivos (29/06/2015)

Cantores não morrem. Isso serve tanto para o jovem cantor da semana passada, preso entre as ferragens do carro espatifado, como para Francisco Alves, o Rei da Voz, vítima de outro carro em alta velocidade, 60 anos atrás, e cuja voz continua ecoando na Rádio Memória de todo mundo. Eles apenas param de gravar disco, de fazer show ao vivo, esses compromissos da banalidade cotidiana agendados por algum empresário de olho no borderô da arte. Aperte o play e veja se não — eles continuam lá.

Por mais que os funéreos dos jornais tenham dado a impressão contrária, quando Maysa espatifou seu cadilaque contra a murada da ponte Rio-Niterói, lá se vão outros tantos 40 anos, outros tantos 120 km por hora, só os surdos pararam de ouvir sua voz triste, sempre encharcada de uísque, sussurrando que o mundo caiu, pedindo que um idiota qualquer lhe riscasse o nome do caderno.

Eu vivo cercado de cantores mortos por todos os lados. Foram-se, é do destino, se é que os grandes artistas em algum momento se vão. Gravaram o que acharam por bem gravar, talvez mais tristezas do que alegrias, porque assim é o forte dessa espécie brasileira. De resto, não se impressione. Faça o download, baixe o programa, vá ao Spotify, e eles surgem vivinhos da silva. Jorge Veiga, Silvio Caldas, Luiz Barbosa, Dick Farney...

De vez em quando, ouço discos de cantores que se julgam vivos e — cá com os meus botões, cá com os meus cacófatos — eu faço cá com as minhas onomatopeias aquele barulhinho do tsk, tsk pensativo que aprendi nas histórias em quadrinhos: coitados, eles não sabem o que cantam. Concluo então que esse negócio de vida e morte, pelo menos quando se trata de soltar a voz na estrada, lançar a voz tamanha, é coisa muito relativa. O sambista Vassourinha, desaparecido em 1942, aos 19 anos, depois de gravar 12 canções, é apenas um exemplo deste tipo de cantor vivo a se procurar no YouTube.

Quando soube do jovem cantor morto na semana passada, mais um que cantava o amor de um jeito que os bacanas costumam chamar de brega, eu me lembrei que outras tantas décadas atrás um desses carros também imprensou contra um muro da estrada a espetacular cafonice de Evaldo Braga, aquele que cantava “sorria, meu bem, sorria, da infelicidade que você procurou”. Os cultos fizeram como os da semana passada e se perguntaram o “quem?” típico da etnia blasé.

Desta vez, diante do corpo do cantor de quem as redações não sabiam o nome, mas o país inteiro acompanhava com o coração aos pulos, não se chegou a fazer como quando morreu Nelson Ned. O anão enxovalhado de ontem foi consagrado no dia seguinte ao seu atestado de óbito como um Sinatra bonsai brasileiro. Era o crime de sempre: os críticos ouvem melhor depois que suas vítimas já morreram.

O cantor morto na semana passada foi enterrado com o tamanho que tinha, apenas o do espanto midiático. Era uma voz dedicada ao embalo da sofrência, o novo rótulo neo-sertanejo para o samba canção, a fossa, o sambolero, a dor de cotovelo e essa eterna mania brasileira de não estar nem aí para o que chamam de bom gosto. A letra sofria, mas, ao contrário dos antigos, agora dançava-se em cima da perda amorosa.

Viver dói, concordamos todos, e é preciso fazer alguma coisa já que as farmácias não vendem mais o Bálsamo Maravilhoso do Unguento Santo. O cantor morto deu a sua contribuição até sair de cena semana passada. “Semeando cantigas, dando alegria a quem chora”, ele continuou a saga que estava descrita um século atrás na letra da marchinha “Cantoras do rádio”, com Carmen e Aurora Miranda: “dissipando a tristeza que mora no seu coração”.

Os cantores mortos assim o são por apenas um dia, nas páginas dos jornais, nos lamentos do Facebook. Essas coisas da rotina humana acontecem com qualquer um, mas no caso deles não são entraves, apenas detalhes tão pequenos. Arte tem dessas vantagens. Lúcio Alves, Anísio Silva, Mario Reis, Blecaute, Roberto Silva. Eles estão sempre por aqui, e só assombram no bom sentido, pela qualidade para sempre moderna de suas vozes.

A novidade é que surgiu uma nova geração de cantores mortos e o da semana passada vai se juntar a João Paulo, o sertanejo também morto a outros tantos muitos quilômetros de velocidade, e que fazia dupla com Daniel. São as novas vozes nacionais. São eles que estão na estrada, realizando shows por todos os cantos, retratos de um país que no litoral ficou mais pobre e diminuiu, mas enriqueceu e cresceu no interior. Inventaram outros ritmos, fazem a festa das multidões invisíveis.

De resto, seguem a tradição dos outros mortos. Querem mais é abrir o microfone, pedir mais grave, mais agudo, mais retorno, para que fique clara a mensagem a todos comum: “Volta, eu não sei mais o que fazer”, dizia uma das letras do que parou de gravar na semana passada e agora vai se juntar ao grande acervo digital de canções ao alcance de um clique.

O Brasil já foi um país de canários, cantores uniformemente distribuídos por todos os estados pelas válvulas da Rádio Nacional ou pelo videoteipe dos festivais da Record. Orlando, Nelson, Jair, Galhardo, Roberto Ribeiro. Todos mortos. Hoje as televisões, voltadas para suas redes nacionais, não sabem programar música, que cada vez mais vive de seus públicos regionais. É axé na Bahia, pagode no Rio, tecnobrega no Pará. Por isso quando uma parte do país chora um ídolo sertanejo, a outra se surpreende com o tamanho da dor que deveras não está sofrendo – e, discretamente, morre de inveja.

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