Investigue-se o amor (08/06/2015)

Nesta perseguição moderna aos culpados de tudo, os mais raivosos resolveram agora que se deve investigar o amor, este vilão que ao seu jeito soez também esfaquearia inocentes e depositaria na Suíça os ganhos da corrupção sentimental. Nesta semana dos namorados, ele é o novo culpado, o canalha a ser extraditado. Não mais entregue às torturas de carícias sublimes, mas acareado com as vítimas de sua infelicidade.

O amor está nas manchetes, execrado como esses governos que diante dos famintos à procura dos seus portos felizes viram a cara, e deixam todos morrer à míngua. Ele, que sempre procurou a discrição das alcovas, é o inimigo público número um, responsável da vez por uma série de malfeitos. Foi quem sobrecarregou de cadeados a ponte de Paris e quase a pôs abaixo com a nova ridicularia dos amantes, esses criminosos que em seguida jogam as chaves no rio e juntam a perda da razão com mais um item da poluição. O amor é o novo terrorista. É ele a flor roxa que na poesia infantil nascia no coração dos trouxas, que também estaria sendo usado nas suas muitas formas heterodoxas para vender perfume e acabar com a família brasileira.

Essas são algumas das acusações registradas até ontem nos tribunais específicos, mas certamente o jornal de amanhã deve trazer novos arrazoados contra o pobre coitado. Alguma charge na primeira página virá com um dedo apontando em riste para um coração, e a legenda definitiva: “Foi ele!”. “O amor não presta!”, gritará a turbamulta em meio ao panelaço.

Não sou eu, tantas vezes iludido por sua carinha de anjo bandido, tantas outras afanado por ele nos meus mais caros depósitos, o melhor advogado de defesa. “O amor é isso que você está vendo”, dizia Drummond, um senhor também desconfiado. “Hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será”. Na semana passada, em São Paulo, uma mulher que morava em frente à igreja de Nossa Senhora da Aparecida matou o marido para rachar o seguro com o amante. Eis outro crime a se julgar contra o indigitado da vez: o amor com amor se paga.

Trata-se de um tipo suspeito, mas lamentavelmente não há homem ou mulher que resista à tentação de transformá-lo em cúmplice benigno de algum projeto positivo e dignificar esta existência chinfrim. É luta vã. O amor resiste aos bons propósitos. Depois de uma semana ronronando aquele nhenhenhém sacana no ouvido da gente, ele sente câimbra no braço e desiste de dormir de conchinha. Incorrigível como todos os escorpiões da sua espécie, nasceu para um dia trair, e — não é você, sou eu — acabar.

No retrato falado espalhado pelas delegacias da existência o amor é sempre desenhado com os olhos dissimulados de uma Capitu qualquer, e para sempre, em toda a literatura que se escreva sobre o assunto, assim o será. Dele se espera as piores notícias no fim de semana. Nos dias úteis, um oficial de Justiça cobrará a pensão alimentícia. Nos melhores momentos, quando na relação do casal faz sol bonito como os deste outono, tudo de bom que se pode receber do amor são cartas ridículas.

Não obstante, aqui proclamo o habeas corpus da minha solidariedade aos fiéis de todos os sexos que estejam ameaçados na vontade de misturá-los ainda mais, do jeito que assim acharem melhor, e com o perfume que desejarem. Eu, tantas vezes mártir, outras tantas vil canalha, peço licença para mandar Detefon no meu lugar. Admiro quem insista na crença da felicidade eterna e, em plena temporada de adoração ao paraíso fiscal, invista no paraíso bíblico. Não contem comigo, porém.

O FBI será justo com todos, assim como tem sido com os cartolas do futebol — mas, convenhamos, o amor é jogada estranha, uma bola que sempre escapa. Parece o drible do Neymar. O jogador finge oferecer a bola com a perna esquerda, mas é só uma molecagem. Diante do bote do adversário, passa aquele sonho de desejo para a perna direita e, deixando o outro estatelado ao chão, sob as risadas da plateia, foge sozinho rumo ao gol.

Eu lamento, com a mentira sincera inerente ao assunto, que o amor esteja sendo tratado como um dirigente da FIFA, um deputado do PMDB, uma Geni do sétimo dia. Ao simples enunciado de seu nome todos os que em algum momento lhe foram vítimas voltam a incriminá-lo, como se estivessem diante do administrador de um campo de extermínio sentimental. Eu não seria um articulador de suas causas. O peito ainda navalhado por muitas de suas desditas, os ouvidos ainda ecoando as portas batidas, sou favorável, no entanto, a que todos sofram democraticamente as suas consequências. Há quem fique pelo caminho. Outros se tornam aptos a entender melhor — e não é pouca coisa — o que está por trás da gritaria chorosa de cantoras como a espanhola Concha Buika. Uma manhã, a brasileira Dalva de Oliveira acordou com a cama de boleros vazia. Correu até o banheiro na procura do amante — mais um que se ia —, e dele só tinha restado a toalha onde estava escrito um tragicômico “Bom dia”. O amor é isso que você está vendo. Bota ridículo nisso.

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