O milagre das sardinhas (22/06/2015)

Agora que vão reabrir o Canecão, o Hippopotamus e — não será surpresa para esta coluna — a loja da Prado Junior onde o Clóvis Bornay comprava as perucas, eu pergunto: o que há contra a jaula da mulher-gorila do Tivoli Park, as Dunas da Gal ou o estacionamento para corrida de submarino na Barra da Tijuca? Por que isso e não aquilo outro, se tudo faz parte da bela aventura de recuperar a cidade a que não pertencemos mais?

É um movimento nobre. No momento em que o espírito do Rio de Janeiro parece tomar o rumo desencantado das catacumbas do Caju, bons cidadãos tentam recuperar endereços históricos para a cidade voltar a se reconhecer diante do espelho. O Bonequinho aplaude de pé e pede que não se esqueçam do lanterninha fardado quando reinaugurarem o Rian no Leme. Que se mantenham abertas tanto a fábrica de balas Juquinha como a cozinha do Oro, as duas pontas da gastronomia, mas permaneçam escancaradas também algumas janelas para o gosto duvidoso de nossa espécie. Por que não forrar os botequins da moda na Dias Ferreira com a mesma serragem de seus pares na Central do Brasil, e deixar o canto do balcão pronto para se derramar a dose do santo?

Que tudo de novo se ponha de pé. Não só os brioches da boulangerie Guerin, mas também o caldo verde às duas da madrugada no Beco da Fome, pois todos esses pratos servem de argamassa do grande edifício carioca. Nada do pudor antigo de deixar de lado o lado B do Rio, a tabela dos três bês praticada no rendez-vous da Madame Lili, a Casa Rosa de Laranjeiras. Ressuscitem suas meninas, as inocentes da Rua Alice, inventoras da moderna sexualidade carioca. Vistam-nas com todos esses pronomes da época e mais as volutas dos seus divinos espartilhos, agora fabricados pela Salinas — tudo na compreensão de que essas heroínas rebeldes ajudaram, tanto quanto os livros da rediviva Leonardo Da Vinci, a construir esta cidade da pá virada.

Que o repórter Geneton Moraes Neto saia em campo. Investigue com o apuro costumeiro e forneça o endereço para a imediata reconstrução do Bordel das Normalistas, o lupanar de Copacabana onde Nelson Rodrigues se homiziava no esforço lítero-jornalístico de trazer crônicas com a alma e a carne daquela bela cidade de onde fomos todos desterrados.

Deletamos Cartago, demolimos o Morro do Castelo, incendiamos o Vogue e estamos todos arrependidos. Que agora se reconstrua tudo de novo, sem preconceito, sem flanelinha, sem couvert, sem dez por cento na nota — e não se me esqueçam de pôr na mesa o creme de abacate com licor de cacau do Penafiel e a batida de amendoim do Tangará. O bom, o mau e o feio, todos mais uma vez debaixo do mesmo Tabuleiro da Baiana. Erga-se uma estátua para a Zezé Macedo e outra para a Rose Rondelli, na certeza de que, para os bons machos, todas lindas são. Que se plante uma palmeira do Mangue na areia de Copacabana. Misture-se o perfume da Fábrica de Sabão Português com a lavanda do Golden Room, tudo isso no mesmo frasco porque uma cidade se faz a partir da convivência dos seus contrários.

Os empresários e demais interessados em devolver ao Rio a sua velha cara — e estamos falando de um Frankenstein meio José Lewgoy, meio Cyll Farney — devem em seguida subir ao vigésimo primeiro andar do edifício de “A Noite”, em frente ao cais onde vai ser inaugurado o sofisticado Museu do Amanhã. Reabram aos nossos ouvidos o palco-auditório da Rádio Nacional para as macacas desmaiarem tudo de novo — e que agora o façam diante dos fantasmas restaurados dos cantores-galãs Francisco Carlos, Bill Farr e Ruy Rey. Transmita-se tudo em HD pelo Facebook, compartilhe-se pelos cinco mil altofalantes, e vamos ver se, olhando no olho de seus artistas, a cidade para de rastejar. Que ela se ponha novamente de pé, seja com o black-tie do Jacinto de Thormes adentrando o Vogue ou com a sunga do Arduíno Colassanti subindo no pranchão no Arpoador — mas, pelo amor de Deus, que tudo se faça sem discriminação chinfrim. A cidade desaparecida tinha alguidares na encruzilhada, a sopa do evangélico Alziro Zarur nas praças e a Casa do Mago sem vidraças quebradas. Que assim de novo seja, amém.

Os salsichões do Bar Lagoa foram salvos, a salada de batata também. Não é pouca coisa. Que agora se ponha todo o resto em harmonia e, no festival de reaberturas, um empresário de boa fé puxe o talão de cheque para recolocar ao lado do restaurante Albamar, na Praça XV, o mercado de peixe que lhe foi amputado. Que o vento do mar novamente assopre o cheiro forte das sardinhas até bem dentro dos nossos narizes, agora transportados pelos trens do VLT na Rio Branco, e acorde o carioca da sua preguiçosa infelicidade. Que se reabram também as lentes das câmeras da TV Rio, que os estúdios da Atlântida voltem a filmar e os espelhos do lobby no Hotel Glória reflitam de novo a cidade. Tudo na esperança de que, saudosa de si própria, ela perceba nas imagens reproduzidas como foi aconchegante um dia — e, em meio à insanidade que ora lhe tumultua as veias, recupere a beleza e razão.

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