Alienados e engajados (17/8/2015)

A Jovem Guarda está fazendo 50 anos e eu, que não sou tremendão, que não sou o bom, que continuo apenas um garoto de olho nos Beatles, nos Rolling Stones e nos suspensórios do monoquíni delas, eu daqui já percebo os críticos de sempre arrumarem suas esferográficas intelectuais para dizerem que foi tudo uma bobagem, uma festa que não arrombou coisa nenhuma e que o tijolinho não cabia na construção da música popular brasileira. Coitados. Eles precisam manter a fama de maus.
Nacionalistas do sétimo dia, há 50 anos esses críticos queriam derrubar os milicos do poder com um punhado de músicas aborrecidas que hoje fazem bonito apenas ao serem citadas no (ótimo) livro do Franklin Martins, “Quem foi que inventou o Brasil?”, sobre as canções que contam a história da república. As letras do protesto falavam na volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar, e a estudantada quando cantava o refrão já via o general Castelo Branco submetido ao açoite implacável. Infelizmente, não foi possível. Hoje, ninguém consegue ouvir Vandré. 
Eles, os críticos engajados, não usaram Ban Lon vinho, não roubaram o esguicho de água do fusca para fazer anel Brucutu e principalmente, no namorinho de portão, não encoxaram a boneca que ainda dizia não, não e não, mas diante da insistência do cabeludo começava a mudar de ideia. Os críticos estavam lendo Marcuse, a supremacia da morte sobre o prazer. Perderam uma das grandes festas da música brasileira nos anos 1960.
A garotada suburbana da Jovem Guarda não foi à guerrilha do Araguaia. Fez a revolução do comportamento nos grandes centros urbanos. Às barricadas de maio em Paris, preferia as saias curtas da Swinging London. Era a prova de fogo. Ao exército do Marighela, em luta contra a opressão da ditadura, ela juntava as forças do exército do surf, contra a opressão dos costumes. Só os mais idiotas não percebiam. Eram frentes diferentes, mas a mesma luta contra a falta de liberdade.
Há 50 anos o país dividia-se em jovens engajados e alienados, na eterna mania brasileira de inventar antagonismos e fazer com que, na década de 1950, as fãs de Emilinha odiassem as de Marlene, e as patrulhas ideológicas, na década de 1970, perseguissem a vontade da geração odara de brincar com o corpo. A pátria amada não perdoa a alegria. Se, meia dúzia de anos antes, ainda na década de 1960, o país quis conscientizar o lobo bobo da bossa nova, com o lobo mau da Jovem Guarda foi a mesma coisa. Perseguiu o bicho. O lobo mau precisava avançar não sobre a pele suave dos brotos, mas na carótida imunda dos gorilas. Na MPB, a tristeza sempre foi senhora da situação. Batuque, só os que vinham da cozinha.
Um crítico paulista, querendo ser negativo, escreveu que a Jovem Guarda marcou a entrada em cena “dos incultos, dos bárbaros, dos sem compromisso com a cultura anterior”. Como, no início do século, os críticos da época disseram exatamente o mesmo sobre os negros que inventavam o samba, eu aqui repito o mote, agora em defesa da causa. A Jovem Guarda foi a invasão dos maus modos da periferia, mas inserida no contexto. A bossa nova mistura o jazz com o samba, os primeiros roqueiros juntam o pop com o jeito suave de cantar o samba-canção.
Aqueles suburbanos mal tinham completado o segundo grau. Eram pobres, alisavam os cabelos com toucas de meias femininas. Ao contrário da turma da bossa nova, que tinha se conhecido no apartamento da Nara Leão na Avenida Atlântica, eles se reuniram pela primeira vez, sentados no chão, no meio-fio das esquinas das ruas do Matoso com a Hadock Lobo. Bota bárbaro nisso! Perceberam antes o que os baianos tropicalistas intelectualizariam em seguida, a necessidade de tornar a música brasileira mais compatível com as últimas notícias. Foi o rugido que se ouviu. Os críticos, engajados em vaiar tudo que soasse imperialismo americano, a grande besta fera da época, não souberam o que fazer com aquela assombração. Um leão estava solto nas ruas.
Isso tudo foi há meio século, quando os galãs fumavam e as mocinhas só beijavam, e de boca fechada, no último capítulo. Priscas eras. Foi no momento exato em que se rompia com um mundo para se embicar neste engarrafamento de hoje. Não era só de música e política que se falava. Pela primeira vez, depois de experimentarmos todos os deuses africanos, judeus, católicos ou muçulmanos, a Humanidade acabava de ver surgir uma nova Força Divina – o jovem.
O ideal de vida até a entrada na década de 1960 era a busca do envelhecimento rápido, pois nele estava o pote da sabedoria suprema. “Envelheçam”, sugeria apoplético Nelson Rodrigues. A bossa nova foi a primeira geração de jovens no poder da cultura brasileira, mas, com todas suas boas intenções, namorava os velhos ídolos e a seriedade de propósitos. Haverá música com mais tristeza, embora linda, do que “Felicidade”, de Tom e Vinicius? Os roqueiros suburbanos acenaram com a alegria sem pedigree da juventude radical, a brasa possível no meio daquele cenário de derrotas.
Foram guerras difíceis. A MPB exaltava a luta armada para enxotar os militares do poder. A Jovem Guarda cantava para enxotar a caretice moralista e levar a menina até a cama. Demorou, mas vencemos todos. O cinquentenário dos falsos alienados é um bom motivo para comemorar.


Comentários

  1. Amei a crônica,e todas aquelas da rádio Batuta.Não sabia que tu tava no mundo!

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  2. Faça uma crônica, por favor, lembrando os bons tempos no colégio, ou ginásio, Prof José Accioli.

    Abçs

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