Loucuras (27/07/2015)

A exposição no Paço Imperial sobre a obra de Maria Bethânia está aí para quem quiser ouvir e depois, seguindo a letra do bolero dela, enxugar as mãos sujas de sangue no pano de prato das canções. Mulher quando canta sofre o diabo. A tradição brasileira do canto feminino é o dilaceramento das fibras do coração, a dor da exasperação amorosa. É a realidade comum a todos nós, mas não me pergunte por que só elas gritam no tom certo e no desespero que deve ser. Primeiro a letra da música cita uma cama. Na segunda parte vem alguém que a difama e joga todo aquele ex-romance, outrora tão pungente, no mais profundo da suja lama. Atire a primeira pedra quem nunca — mas são elas que confessam por todos nós. Todas levaram um pé na bunda pela manhã e à noite, sem constrangimentos, ungidas às vezes pelo remorso, outras tantas pelo ódio mais profundo, correm para o estúdio. Fazem questão de gravar como aconteceu. Lanham em público as entranhas de mais uma separação. Deixam sangrar com arte. Obrigado, queridas.

O canto masculino nacional é o da voz pequena, joões e mários, reis dedicados aos sambas de cunho bem-humorado ou de olho no sincopado das doralices e lourinhas que passam. Os caras riem de tudo, do pato na lagoa ao papagaio louro do bico dourado. Dito isso, já ouço alguém da plateia gritar o nome do Cauby!, que está nos cinemas com um extraordinário documentário de Nelson Hoineff. Ou do Nelson Gonçalves!, que eu sempre ouço quando passo pela Rua Alice e percebo tocando lá dentro para os fantasmas das prostitutas da Casa Rosa. São as exceções de praxe, os praxedes que logo em seguida estarão de olho na normalista em seu uniforme-fetiche azul e branco. Eles são poucos. Só me fazem pegar no braço da agulha, levá-lo até a faixa do LP e repetir a música. Essas moças! Pobres moças!

Elas, as cantoras dramáticas brasileiras lideradas por Bethânia, botam os bofes pela boca, zero de vergonha na exuberante arte de tonitroar que foram traídas ou que talvez tenham culpa, talvez até mereçam tamanho despautério, como foi o caso de Aracy Cortes cantando com seu falsete lírico o “Flor do lodo”, a mulher de baixo costume, bem no início desta tradição. Freud talvez explique. José Ramos Tinhorão, Jota Efegê, Lúcio Rangel, Tárik de Souza ou Zuza Homem de Mello, os melhores críticos da MPB, não se aventuraram por esses desvãos. As cantoras são as que dão a cara a tapa, as que levam desaforos para a casa da música e insistem na ilusão de que um dia vai dar certo. “Minha estranha loucura é tentar te entender”, canta Alcione.

Por que elas são superiores em cantar, com o sofrimento certo, a experiência comum aos dois gêneros de levar com uma porta no meio da cara? Por que só elas em seguida abrem o microfone e, como Cássia Eller fazia, confessam como doeu, como estão dilaceradas pelo remorso, o ciúme ou qualquer outra dessas canalhices sufragadas nos cornos pelo fim da paixão?

É natural que, na falta de uma tradição nacional de compositoras, essas moças, insistentemente pobres moças, socorram-se de letras de homens de personalidades trágicas, e ponham fogo na garganta para de alguma maneira expor a infelicidade ou o rancor de seus justos sentimentos. A voz feminina parece mais sincera na confissão de que, mais uma vez, perderam a aposta. Quando Antonio Maria deu “Ninguém me ama” para Nora Ney e Lupicínio Rodrigues fez o mesmo com Linda Batista, eles pareciam querer que o desespero fosse sublinhado do jeito brasileiro mais clássico, o da voz de uma mulher. Aquela que apesar de tudo vai insistir na irresistível patacoada do jogo amoroso.

Eu já ouço alguém do outro canto do auditório gritar Jamelão, Waldick, Carlos Alberto, Orlando Dias, mas logo em seguida o silêncio se faz profundo, soterrado pelo chorrilho de ícones femininos gritando o horror da solidão (viva Núbia Lafayete e Martha Mendonça!), o desespero do ciúme (salve Dalva de Oliveira e Dalva de Andrade!), a depressão louca do abandono (obrigado, Claudia Barroso e Maysa!). Todas vociferavam com estilo o que lhes era realidade crua. Cantavam em justa causa (e eu ia me esquecendo de Isaurinha Garcia!). Em algum momento, eram demitidas sem aviso prévio do conforto conjugal.

Elas não só sabiam do que estavam falando — e deve-se citar ainda Wilma Bentivegna cantando “Hino ao amor” e Morgana em “Serenata do adeus” — como colocavam nas revistas do rádio um currículo cheio de confirmações. Era vida real. Essas cantoras tristes abriam o decote das canções. Mostravam no peito o punhal tatuado, uma gota seguida de outra gota, pingando interminável, ferimentos por todos os cantos, do fundo imundo do coração vagabundo.

Eu ouvi tudo isso pairando sobre a bela exposição em homenagem à grande cantora dramática baiana, e é uma pena que uma das mais bonitas tradições da MPB tenha desaparecido. Fernando Pessoa, o poeta preferido de Bethânia, estava certo. Ninguém mais leva porrada. Todos príncipes e vencedores. Se os homens já eram econômicos em escancarar o sofrimento na frente do microfone, agora são as novas cantoras que não querem saber de confessar que perderam. São todas preparadas, cachorras no cio fazendo a fila andar. A boa notícia é que, esta semana, Adriana Calcanhotto, com sua voz pequena, sem dramas, mas reverente às divas e às tradições que a antecederam, lança o CD/DVD “Loucura”. São canções de Lupicínio. O amor de novo em cena, sem happy end, com todas as suas trapaças sórdidas. Calcanhotto — vingança, vingança — empata o jogo.

Comentários

  1. As mulher cantando e interpretando são superiores aos homens.Inclusive uma pesquisa científica comprova isso.Se é que pesquisa científica consegue provar alguma coisa.

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