A mais urgente prioridade da civilidade no Rio é o puro bestar pelas ruas
Um empresário será preso e delatará
como cúmplice de corrupção um senador da República. A Europa será invadida por
nova leva de refugiados. Tudo isso repercutirá muito grave, histórico e
merecedor das manchetes. Para mim nada soará mais importante nos próximos dias
do que a inauguração da praça no Centro do Rio de Janeiro. A avenida em frente
será fechada a tudo que se move sobre rodas. Os bípedes, como zumbis
ressurgidos das crateras abertas na cidade, caminharão momentaneamente
vitoriosos.
Chamava-se a atividade de “passear”. As
pessoas saíam de casa assim como quem não quer nada, olhando as modas, olhando
o que lhes desse na telha, essas expressões batutas do prazer antigo. Andavam
de um lado para o outro sem qualquer pauta pré-estabelecida. Comemoravam discretamente
a euforia de estarem vivas, de brilhar sobre suas cabeças um céu azul de começo
de primavera — mais o fato de as calçadas, as praças e as ruas ainda parecerem
amigáveis para se ir daqui para ali, ou vice-versa. Conversavam, respiravam
fundo, chutavam tampinha. Cutucavam o companheiro para ir devagar e não
assustar o par de borboletas, uma branca, outra azul, que vinha na direção
contrária, naquela balbúrdia trêfega, comum a todas as espécies, da alegria do
início de um acasalamento.
Passeava-se, o lazer básico da saúde
pedestre, e o Rio de Janeiro, que tinha ainda a pista de areia das praias,
orgulhava-se de ser um imenso boulevard, a passarela interminável onde cada um,
sem couvert, sem consumação mínima, entretinha-se grátis com o que lhe fosse ao
gosto: o verde das florestas, o art déco das construções, a beleza das
mulheres, a peraltice dos infantes ou as folhas avermelhadas das amendoeiras
caídas ao chão, único percalço ao livre circular.
Entre os literatos, chamava-se tal
atividade de “flanar”. Vários clássicos da escrita carioca não passam disso: um
sujeito conta com estilo leve e serelepe os não acontecimentos de uma caminhada
ao léu. O vento que bate no rosto ao sair de uma rua interna para uma avenida a
beira-mar, o maravilhamento nos olhos diante de um desenho jamais percebido na
silhueta das montanhas e, principalmente, o pensamento que parece uma coisa à
toa, mas como é que ele voa quando vê um jardim, e associa com o grande amor
que se foi faz tempo, e vê mais adiante um vulto de mulher que se parece com
ela, o estampado da saia com o mesmo padrão da que usava naquela noite, e,
suspirando fundo, descobre em seguida que infelizmente talvez não seja ela.
Esta cidade outrora peripatética, hoje
escondida em algum lugar atrás das multidões estressadas e dos engarrafamentos
não menos, vai dar no domingo uma olhadinha aqui fora para ver se ainda há
tempo de reverter esse progresso de araque. Setenta anos depois de acabarem com
a Praça Onze, reabre-se com desenho espetacular a Praça Mauá. Como plus da
novidade, fecham-se aos carros os dois quilômetros da Avenida Rio Branco. Para
quê? Ora, meu caro, para a mais urgente prioridade da civilidade urbana, a mais
terapêutica das recomendações sociais e a mais cara necessidade de saúde
pública: para o mais puro bestar!
O Rio de Janeiro, que já foi uma sereia
a beira-mar desenhada, hoje é uma encalhada baleia a beira de um surto de
depressão aguda. Ela passou as últimas décadas abrindo túnel para metrô,
inaugurando ônibus supersônicos logo superados, e plantando barracos da polícia
pacificadora para que servissem de alvo aos bandidos. Nada deu muito certo.
Abrir uma praça cercada de museus por todos os lados, com suas duas avenidas
principais cheias de restrições à circulação dos ônibus (a Prefeito Luiz Paulo
Conde também terá um boulevard), pode não resolver o problema, mas finalmente
busca-se uma dimensão humana. Desengarrafam-se os caminhos para a gente
bronzeada passar com seus valores supremos, de alegria e congraçamento.
Atende-se ao pedido dos mais sensíveis médicos-urbanistas do mundo. Relaxa,
minha nega, vai ver quem está na esquina.
Um século depois do “Rio civiliza-se”,
bordão para exaltar o botabaixo e o rasgavenida do Pereira Passos, percebe-se
agora que civilizar é dar qualidade de vida aos moradores — e a cidade abre
alas para a grande folia de vadiar, zerar o QI, dar um rolê, perambular sem
compromisso no grande corredor entre a Cinelândia e a Praça Mauá. O ciclo se
fecha. A Rio Branco acolhe de volta ao seu terreiro histórico os incomodados que
fugiram dali há tempos, todos entristecidos com o desconforto cotidiano das
obras, da feiura de ruas atravancadas pelas multidões apressadas, e da
avacalhação dos camelôs brigando com a polícia pelo direito de vender pau de
selfie.
Se durante a semana o Centro é um
inferno, aos domingos passa a ser uma linda avenida para quem quer fugir do
outro inferno que viraram as praias no fim de semana. O plano é, no final da
caminhada, com a cidade de novo tomada pelos pedestres, estarem todos mais uma
vez acumpliciados com ela. Não faltam boas-vindas. Os antigos donos do pedaço,
a melindrosa da marchinha do João de Barro (“que anda sem meia em plena
Avenida”) e o almofadinha do J. Carlos (sempre correndo atrás dela), saúdam a
todos.
Quando você chegar à nova Praça Mauá,
suba, atrás do prédio de “A Noite”, os degraus que levam ao silêncio charmoso
do Morro da Conceição. Desligue o GPS. Perca-se pela Rua do Jogo da Bola. Reencontre-se
com a paz da cidade.
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