Rio Branco-Praça Mauá (O Globo, 31/08/2015)

A mais urgente prioridade da civilidade no Rio é o puro bestar pelas ruas

Um empresário será preso e delatará como cúmplice de corrupção um senador da República. A Europa será invadida por nova leva de refugiados. Tudo isso repercutirá muito grave, histórico e merecedor das manchetes. Para mim nada soará mais importante nos próximos dias do que a inauguração da praça no Centro do Rio de Janeiro. A avenida em frente será fechada a tudo que se move sobre rodas. Os bípedes, como zumbis ressurgidos das crateras abertas na cidade, caminharão momentaneamente vitoriosos.
Chamava-se a atividade de “passear”. As pessoas saíam de casa assim como quem não quer nada, olhando as modas, olhando o que lhes desse na telha, essas expressões batutas do prazer antigo. Andavam de um lado para o outro sem qualquer pauta pré-estabelecida. Comemoravam discretamente a euforia de estarem vivas, de brilhar sobre suas cabeças um céu azul de começo de primavera — mais o fato de as calçadas, as praças e as ruas ainda parecerem amigáveis para se ir daqui para ali, ou vice-versa. Conversavam, respiravam fundo, chutavam tampinha. Cutucavam o companheiro para ir devagar e não assustar o par de borboletas, uma branca, outra azul, que vinha na direção contrária, naquela balbúrdia trêfega, comum a todas as espécies, da alegria do início de um acasalamento.
Passeava-se, o lazer básico da saúde pedestre, e o Rio de Janeiro, que tinha ainda a pista de areia das praias, orgulhava-se de ser um imenso boulevard, a passarela interminável onde cada um, sem couvert, sem consumação mínima, entretinha-se grátis com o que lhe fosse ao gosto: o verde das florestas, o art déco das construções, a beleza das mulheres, a peraltice dos infantes ou as folhas avermelhadas das amendoeiras caídas ao chão, único percalço ao livre circular.
Entre os literatos, chamava-se tal atividade de “flanar”. Vários clássicos da escrita carioca não passam disso: um sujeito conta com estilo leve e serelepe os não acontecimentos de uma caminhada ao léu. O vento que bate no rosto ao sair de uma rua interna para uma avenida a beira-mar, o maravilhamento nos olhos diante de um desenho jamais percebido na silhueta das montanhas e, principalmente, o pensamento que parece uma coisa à toa, mas como é que ele voa quando vê um jardim, e associa com o grande amor que se foi faz tempo, e vê mais adiante um vulto de mulher que se parece com ela, o estampado da saia com o mesmo padrão da que usava naquela noite, e, suspirando fundo, descobre em seguida que infelizmente talvez não seja ela.
Esta cidade outrora peripatética, hoje escondida em algum lugar atrás das multidões estressadas e dos engarrafamentos não menos, vai dar no domingo uma olhadinha aqui fora para ver se ainda há tempo de reverter esse progresso de araque. Setenta anos depois de acabarem com a Praça Onze, reabre-se com desenho espetacular a Praça Mauá. Como plus da novidade, fecham-se aos carros os dois quilômetros da Avenida Rio Branco. Para quê? Ora, meu caro, para a mais urgente prioridade da civilidade urbana, a mais terapêutica das recomendações sociais e a mais cara necessidade de saúde pública: para o mais puro bestar!
O Rio de Janeiro, que já foi uma sereia a beira-mar desenhada, hoje é uma encalhada baleia a beira de um surto de depressão aguda. Ela passou as últimas décadas abrindo túnel para metrô, inaugurando ônibus supersônicos logo superados, e plantando barracos da polícia pacificadora para que servissem de alvo aos bandidos. Nada deu muito certo. Abrir uma praça cercada de museus por todos os lados, com suas duas avenidas principais cheias de restrições à circulação dos ônibus (a Prefeito Luiz Paulo Conde também terá um boulevard), pode não resolver o problema, mas finalmente busca-se uma dimensão humana. Desengarrafam-se os caminhos para a gente bronzeada passar com seus valores supremos, de alegria e congraçamento. Atende-se ao pedido dos mais sensíveis médicos-urbanistas do mundo. Relaxa, minha nega, vai ver quem está na esquina.
Um século depois do “Rio civiliza-se”, bordão para exaltar o botabaixo e o rasgavenida do Pereira Passos, percebe-se agora que civilizar é dar qualidade de vida aos moradores — e a cidade abre alas para a grande folia de vadiar, zerar o QI, dar um rolê, perambular sem compromisso no grande corredor entre a Cinelândia e a Praça Mauá. O ciclo se fecha. A Rio Branco acolhe de volta ao seu terreiro histórico os incomodados que fugiram dali há tempos, todos entristecidos com o desconforto cotidiano das obras, da feiura de ruas atravancadas pelas multidões apressadas, e da avacalhação dos camelôs brigando com a polícia pelo direito de vender pau de selfie.
Se durante a semana o Centro é um inferno, aos domingos passa a ser uma linda avenida para quem quer fugir do outro inferno que viraram as praias no fim de semana. O plano é, no final da caminhada, com a cidade de novo tomada pelos pedestres, estarem todos mais uma vez acumpliciados com ela. Não faltam boas-vindas. Os antigos donos do pedaço, a melindrosa da marchinha do João de Barro (“que anda sem meia em plena Avenida”) e o almofadinha do J. Carlos (sempre correndo atrás dela), saúdam a todos.

Quando você chegar à nova Praça Mauá, suba, atrás do prédio de “A Noite”, os degraus que levam ao silêncio charmoso do Morro da Conceição. Desligue o GPS. Perca-se pela Rua do Jogo da Bola. Reencontre-se com a paz da cidade.

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