Jornalista agora
bate cartão de ponto
Era uma profissão romântica,
cercada de mulheres bonitas por todos os lados, viagens internacionais a toda
hora, e, enquanto elas não chegassem — mulheres e viagens —, o sujeito enfiava
o chapéu com uma pena do lado e ia aos bares garimpar notícias. Bebia martíni,
conversava sem distinção com quem lhe pagasse a conta. De repente, diante de
alguma novidade, ele corria ao balcão, pegava o telefone preto e discava para a
redação o grito aflito. Parem as máquinas. Era o jornalista de cinema.
Parece que Samuel Wainer, à exceção
do chapeuzinho com a pena, teve momentos assim. Antonio Maria, diretamente do
Golden Room do Copacabana Palace, também. Os outros jornalistas, por menos
glamour que o dia a dia da profissão lhes oferecesse, carregavam a fantasia
hollywoodiana no fundo da memória — e achavam que breve usariam o tal
chapeuzinho com a pena prometido pelo cinema. Derrubariam o Nixon da vez.
Recolheriam no Londra a loura mais espetacular da noite e embarcariam com ela
nos braços para cobrir a inauguração de um novo cassino em Dubai.
Este jornalista romântico, sempre
orgulhoso de saber primeiro que o mundo acabou, será sepultado na próxima
semana numa cerimônia sem pompa, sem dry martíni e sem o leão da Metro rugindo
na abertura da cerimônia. Nenhum jornal deu a notícia. O obituário do Globo não
publicou uma linha. O jornalista romântico, embalado pelo sonho de ser Tarso de
Castro e repetir sua glória de uma noite desfilar com a Candice Bergen no
Antonio’s, manquitolava pela lateral do campo desde que as redações passaram a
ser preenchidas apenas por quem tivesse um diploma de Comunicações. Os poetas
bêbados com fichas do AA no bolso, alguns com curso de Letras, outros formados
pela faculdade das ruas, foram trocados pelas estagiárias de calcanhar sujo,
quase todas lindas, vindas do pilotis da PUC.
Agora chegou o golpe fatal, e eis
aqui a causa mortis que sepulta para sempre o jornalista romântico.
Ouçam essa, Otávio “Pena Branca”
Ribeiro, Hamilton Almeida Filho, Décio Bar, Oderfla Almeida, Oldemário
Touguinhó, José Roberto Alencar, Tim Lopes e Lúcia Rito, ouçam essa todos os
que deram suas vidas em plantões intermináveis no covil dos bandidos ou nos
ateliês dos últimos modismos. Ouçam essa, repórteres que entregaram todas as
suas horas atrás de gargantas nem sempre profundas pela noite sem fim. Ouçam
também, editores no eterno fechamento à espera da matéria que só chegará ao
cantar do terceiro galo, depois da reunião em algum ministério mal assombrado.
Atenção, todos os redatores atracados com aquele texto que não sai, que não
pega liga, e vão precisar do fim de semana para acertar o tom.
Atenção, fonte fidedigna, vírgulas
escorreitas e deadline implacável.
A partir de abril, jornalista vai
bater cartão de ponto. Precisará fazer todas as suas perguntas e redigir as
respostas que recolheu num prazo de oito horas. Findos esses 480 minutos
regulamentares para a prática da curiosidade irrestrita, o jornalista cai no
regime de hora extra e passa a onerar os custos da produção. Em tempos de
crise, ligar a bandeira dois pode ser pior que colocar o lide no pé da matéria
— mas há outras informações truncadas, infográficos empastelados e barrigas
cheias de estrias nesta novidade aprovada pelo sindicato da classe.
Jornalismo, do tipo bom, é tudo
aquilo que acontece fora da hora. O resto é entrevista coletiva. Press release.
Informação de assessoria. Declaração ditada pelo ministro. O tédio e o
nariz-de-cera.
A profissão que agora se quer
transformar numa atividade como outra qualquer, parecida com as exercidas nas
fábricas do ABC, sujeita ao mesmo relógio que cronometra o caixa dos bancários,
ela tem princípios diferentes. Nada a torna melhor ou pior que as outras, mas
está claro desde Gutenberg, VillasBoas Correa e Zé Grande que o imprevisível,
ao contrário do que deve ocorrer numa linha de montagem da Fiat, é o espírito
da coisa. A Gisele Bündchen pode marcar seu terceiro casamento hoje à noite em
Búzios, o traficante pode tocar o terror amanhã cedo no Posto Nove. Essa gente
é da pá virada, essa gente inventa moda — e não bate cartão. Para colocálos em
ordem, pelo menos na mesa de café do leitor, o jornal moderno criou novo
pelotão de profissionais. Também não é melhor nem pior que o antigo, mas outro.
Tinha os sócios do AA, os
semianalfabetos que narravam suas reportagens aos redatores, os boêmios da
Lapa, os literatos copidescando telegramas enquanto engendravam o grande
romance de sua geração, os revolucionários que sonhavam usar o jornal como
panfleto para transformar o mundo. Eu vi todos esses românticos expulsos das
redações. Deixaram algumas saudades. Eles contribuíram com histórias inacreditáveis
para o folclore das conversas no cafezinho. Não ajudavam em nada o fluxo do
fechamento.
O cartão de ponto acaba com
qualquer sombra de romantismo na operação de enviar páginas a uma gráfica, uma
fábrica de notícias que precisa estar azeitada para enfrentar concorrentes que
surgem por todos os lados. Em tempos de internet, quando as profissões
inventaram novas relações de tempo com seus afazeres — todas trabalhando muito
mais —, bater cartão no relógio ao fim de oito horas é brincadeira tão boba
quanto mandar a estagiária pegar a calandra na oficina. Na era da fibra ótica,
com os escritórios esticados até as casas, cartão de ponto parece matéria da
editoria Internacional sobre aniversário da Revolução Industrial.
Tenho outras ideias sobre o
assunto, mas estou impedido sindicalmente de revelá-las. Daqui, ouço o
carrilhão do relógio anunciando. Acabam no ponto final que se segue as minhas
oito horas regulamentares para a prática diária do jornalismo.
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