O papo aqui é outro (19/02/2018)

Cronista é aquele que muda de assunto. Se resolver bater no Crivella, fa-lo-á de trivela, procurando chutar a semântica com três dedos

E assim se passaram três anos desde que o cronista de segunda-feira foi ali na esquina tomar uma caracu com ovo no restaurante da Dona Ana, e eis que quando ele volta — pois é, corram as matracas, o suburbano voltou —, eis que agora é de boa sabedoria só falar sobre os descalabros dos tempos. A cada minuto inventa-se um novo pecado — e todos se mantêm on-line, aflitos, à espera de que seja denunciado hoje o que cada um fez no verão passado. Ideologia, como pedia o poeta, agora todos têm uma para viver. O problema é que um cronista, no contrapé desse engajamento generalizado, não sobe em palanques. Ri deles. Se convidado, cantarola o velho jingle que desde a infância lhe serve de mote libertário — e pede para mandar Detefon em seu lugar.

Ele sabe que a barra está pesada e não à toa seu vade-mécum é o aplicativo “Onde tem tiroteio”. Também só atravessa a rua depois de olhar para todos os lados, pois tem tanto medo da bala perdida quanto da bicicleta na contramão. De tudo ele é cônscio, de tudo é temor, de toda essa brabeira carioca ele é vítima e paranoia — mas nem por isso hasteia bandeira. Cronista é aquele que muda de assunto. Se resolver bater no Crivella, fa-lo-á de trivela, procurando chutar a semântica com três dedos. Sua causa maior é a procura de outras palavras, de preferência aquelas que não ostentem autoridade vernacular. O descalabro denunciatório deve ser publicado na editoria competente. O papo aqui é outro.

Há um país inteiro revoltado, todos a favor de serem contra as mesmas coisas. Investiga-se hoje um comportamento que ontem era da praxe ocidental cristã, mas, depois do textão de uma ativista pela manhã, foi direto para a lista de práticas abusivas — sendo urgente que os homens de bem revejam seus valores e sigam imediatamente à caça dos novos deletérios. Ninguém presta, todos culpados. Há, a propósito, um conto ótimo sobre tudo isso, “O alienista”, escrito às gargalhadas, em 1871, pelo bruxo do Cosme Velho Machado de Assis. Depois de acusar geral as insanidades alheias, inventar distúrbios onde havia apenas idiossincrasias, o alienista cerra-se sozinho no hospício. Alienado era ele.

O cronista reconhece o calor irresistível das manchetes nacionais. Também se acha prenhe da vontade tão cidadã de seguir os seus pares e, em nome da justiça, da indignação civil, tacar alho na cara do vampiro Temer, balançar o cacófato na cara da corrupção — mas numa coluna do primeiro caderno já tem alguém que cuida disso. Nunca fomos tão repetitivos. O monotema político, extinta a saúva, é a nova desgraça nacional. Só se pensa naquilo e na gravidade urgente de que é preciso se posicionar. Até no carnaval, onde sempre se brincou de jogar pó de mico na cara da realidade, a escola de samba campeã também veio com um artigo de fundo e as alas, algumas sem fantasia, vestidas como pivetes do dia a dia, velaram raivosas o carro alegórico com o caixão do estudante morto.

É este pois o momento em que se encontra a pátria amada, aquela a que nem os filhos aguentam mais, e foi a ela que o cronista voltou, três anos depois de ter ido ali no passado reler as seis mil crônicas que Elsie Lessa escreveu no GLOBO, todas sobre os pequenos detalhes da existência, zero de discurso e empáfia, todas eternizadas pela qualidade do texto e a falsa aparência de que não há nada mais fácil no jornalismo do que escrever crônicas. São joias literárias que ventilavam de delicadeza a edição barra pesada do jornal. Fernando Sabino e Antonio Maria também passaram por estas páginas, ambos praticantes desta mesma deliciosa arte de assediar o leitor com estupores da imaginação, histórias que assoprassem outros cenários para muito além do factual jornalístico, essa exigência de realidade que edita as outras seções.

Sabino e Maria primeiro ofereciam uma palavra despretensiosa assim como se estivessem falsamente desinteressados, como se não quisessem nada além da companhia do leitor para um papo durante o café da manhã. Depois engrenavam um cerca-Lourenço, contavam a origem engraçada da expressão, convidavam para uma caminhada, um drink sem fins lucrativos no Antonio’s, e eis que então, de conversa em conversa, a lábia do cronista, num texto que falava baixinho, ia levando o leitor de frase em frase, de preferência com poucas vírgulas, até o orgasmo do ponto final.

O cronista de segunda-feira tinha ido ali no arquivo sintonizar esses mestres, saber como escreviam a vida fora da pauta corriqueira, como lamentavam o amor perdido, como riam de si próprios — quando foi acordado pela gritaria cheia de certezas do grande tribunal da irritação nacional. Todos graves, faziam reflexões e apontavam o o caminho.

Tempos atrás, Verissimo espargia sobre os maus humores de outras crises as gotas de perfume da série “Poesia numa hora dessas”. Hoje, uma crônica numa hora-pior-ainda não vai resolver nada, mas é o que fica combinado. Com a bênção de Elsie Lessa, Antonio Maria e Fernando Sabino pode ser que brote algum sentido nas palavras, surja alguma graça nas parábolas e se abra uma janela para a segunda-feira respirar.

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