Você é disruptivo?

A língua, como tudo mais neste Bananão 2018, está travada


Querido Zuenir Ventura, mais uma vez estou contigo e como prova de tal escrevo estas mal traçadas públicas, todas no ensejo de também soltar a voz na estrada que você, sobranceiro, desbravou com perspicácia viril. Que língua estapafúrdia é essa que o país está falando, meu imortal?

Peço vênia para ir além dos confins semânticos de suas crônicas recentes e agregar, ao seu espanto com a palavra “teratológico”, a minha coleção de choques com essa mania nacional, tão bem observada por você, de esculturar dificuldades verbais. Nunca fomos tão pernósticos. Falar difícil é velho truque para disfarçar algum crime e nessas horas eu me lembro do discurso do deputado baiano. Ele dizia estar de terno branco para tentar ser mais claro. Não conseguia. Era-lhe da índole.

A ignorância alheia adora palavrório obscuro, de preferência eivado de polissílabas, pois, quanto maior o número delas, mais brilhareco afetado produz o paralelepípedo nos ouvidos crus. Ou será, meu eterno mestre Zu, que simplesmente me falta o novo preto que veste a língua dos modernos — será que me falta resiliência?

Eu tenho escapado das balas perdidas, mas este tiroteio verbal a toda hora me ribomba dor nos tímpanos. Não tenho esperança. Este é o país dos sonetos bigodudos de Bilac e das fantasias do Clóvis Bornay. Quanto mais rococó, mais aplausos. Dizem que é o prezo pela língua culta. Eu divirjo. Você já ouviu falar no funk ostentação? Os garotos pobres exibem joias, mulheres e tênis de grife. Pois agora temos a gramática ostentatória. Todo mundo enchendo a boca para dizer exatamente o mesmo. Nada. E tome “narrativa”, “vivenciar a experiência”, “follow up” e demais salamaleques de quem quer, via caixa dois da prosódia, esconder o jogo.

É o “embromation”. Os ministros do STF, onde você identificou essa nova filologia malsã, ficaram de teratológico para cá, teratológico para lá, e, soubemos depois, eles apenas esticavam as proparoxítonas para que o tempo da sessão acabasse e não se resolvesse nada.

A propósito, meu bom Zuenir, você sabe o que é disruptivo? Um artista plástico me garantiu, muito ensimesmado em sigo próprio, que sua obra era disruptiva. Eu imagino ser apenas o jeito atual de vestir o pretinho básico, aquela onda da década passada de quebrar paradigmas. É a língua fashion. Todos querem posar com a boca cheia de letrinhas gordas. Ninguém mais faz o simples e bota pra jambrar.

Sempre que alguém complica o papo eu me lembro do “seu” Rolando Lero, da Escolinha do Chico Anysio. Ele era tão mau aluno quanto os demais, mas, assim como sua colega Dona Raimunda usava a rima rica para vencer os rigores do professor, Rolando Lero tinha suas manhas. Juntava as palavras mais compridas a outras maiores ainda, numa cornucópia de disparates sem sentido mas que formava um glacê de pedantismo linguístico tonitruante. A verborragia levava uma pontuação razoável, em geral um seis, pelo esforço de “seu” Rolando Lero sacudir palavras que se julgavam para sempre enterradas no dicionário.

Eu peço vênia, Zu, se pareço distópico. O estupor com essas idiossincrasias verbais pode ser incapacidade particular de cronistas. De não percebermos que disruptivo, teratológico e distópico não estão aqui nos seus lugares de fala, se é que você me permite a muleta pós-moderna. Na contramão dessa pompa verbal, preferimos palavras curtas, de uso comum. Tentamos uma desimportância tal que o grande sonho é oferecer ao leitor a impressão de participar apenas de um papo furado de botequim.

Sei lá, Zu. Talvez me falte alteridade, como dizem os linguarudos, a capacidade de me passar por um juiz, jogar a capa preta no texto e provar com a boca o mal secreto e bilioso de um léxico mais secreto ainda. Longe de mim ser contra a língua viva, a que se enfia gostosa por jargões corporativos, se reinventa com sugestões de outros idiomas ou se mete sem cerimônia pelos buracos das frases. A língua mexe, claro, mas as grandes belezas que a transformam vêm das ruas. Este palavrório de suas excelências é cafona, sem transparência, outro clichê fora da caixa que todos professam mas ninguém pratica. A língua, como tudo mais neste Bananão 2018, está travada. Há um medo terrível de parecer vulgar ou agredir a nova ética estabelecida ontem à noite.

Estou fora. Ao papo das excelências, fico com a língua das novinhas.

Enfim, Zuenir, nunca se jogou tantas palavras ao léu, e a culpa não é só do STF. As redes sociais, a crítica de arte, a gestão de pessoal e o ambiente digital estão aí para nos dar razão. Quanto mais se fala, menos se entende. Na selva de ódio onde nos metemos, qualquer coisa que se diga, e seja compreendida com clareza, logo levará o apedrejamento devido. Pode ser que o linguajar oblíquo seja uma UPP de segurança. Falar claro ficou perigoso. Escondido atrás desses proselitismos da reengenharia discursiva, o sujeito pode alegar ter sido mal compreendido e, na base do entretanto, do outrossim, do outronão e do não é bem assim, se salvar do tiroteio acusatório. Eu sou pelo papo reto, Zuenir, e tenho certeza que posso incluir o amigo neste manifesto. Prendam os corruptos e deixem a língua solta.

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