Por falta de clima, primavera é adiada (16/09/2018)

Desculpe, Rubem Braga, autor de tantos clássicos sobre o assunto, mas hoje não tem tico-tico fazendo ninho numa touceira de samambaia

Este já foi um trabalho mais fácil. Um cronista de jornal que se prezava cumpria em setembro um dos mandamentos básicos da profissão. Nas proximidades do dia 22, sacava de um assunto obrigatório e redigia loas líricas à chegada da primavera com todo seu jardim de metáforas. Era uma estação político-existencial, cada cronista escolhia a esperança a plantar com ela. Havia a papoula vermelha dos comunistas, o trevo de quatro flores de quem queria apenas a sorte de um amor tranquilo. As flores falavam. Os cronistas anotavam e passavam adiante.

Desculpe, Rubem Braga, autor de tantos clássicos sobre o assunto, mas hoje não tem tico-tico fazendo ninho numa touceira de samambaia. Hoje não tem gerânios em flor na janela. A vida real tomou conta da crônica de primavera — e, a propósito, semana passada, um tiroteio no Cantagalo, morro aos fundos, calou os sabiás no pomar da cobertura onde o cronista morou em Ipanema. Cultivava araçás. Na hora de escrever, levava a primavera para o escritório e espalhava borboletas entre os parágrafos.

Sei que ainda faltam cinco dias para a estação inspiradora desses textos sublimes, mas eu tenho visto os sinais das pesquisas de clima. Não é possível cronicar ligeiro numa hora dessas. De vez em quando, com cuidado para não ser atropelado por uma bicicleta na calçada, vou ali na esquina ver o que passa. A impressão é a mesma. Só lesmas e caramujos devorando o jardim à beira-mar plantado. O medo vestiu-se de grande jardineiro e para onde quer que se olhe ele plantou multidões de buganvílias, coroas de cristo e rosas trepadeiras. Só flores com espinhos — e todos em riste zangado contra quem quer que se atreva.

O ruim e o pior, além do dólar nas alturas, tudo está previsto para acontecer a qualquer momento. Ninguém se surpreenderá. Esses sentimentos tristes, quem já regou um canteiro sabe, não deixam crescer flores no jardim de casa alguma. Por isso, não leve a mal, grande Braga. Fica para a próxima. Não há condição de vir ao mundo nesta temporada que se inicia sábado a tradicional flor de Jade do Jardim Botânico. Os tempos estão mais para flor de Hiroshima.

Perdão, leitor. Eu sei que isso deveria ser uma crônica, um espaço para inventar estratosferas que permitam a todos voar longe das aflições cotidianas. É a janela que o jornal abre para agradecer ao leitor ter vindo até aqui, brindá-lo com um texto que o faça respirar fundo — e não se deixar abater pela barra pesada do que leu nas outras páginas.

Hoje não é mais possível usar a primavera para mandar um recado de delicadeza ou promessas de romã ao jardim de todos. A cada setembro plantava-se fé com o adubo das palavras mais gentis. Depois vinha Natal, Ano Novo, e logo em seguida colhia-se a certeza de que o carnaval da justiça e dos bons propósitos tomaria conta. Tudo teria jeito. Ao fundo, Helena de Lima cantava “Estão voltando as flores” com a banda dos Fuzileiros Navais. Foi, deveras e infelizmente, alhures. Coisas do tempo do Rubem Braga.

Seu texto era o jardim das delícias. Por afável demais, begônias no lugar das vírgulas, não serviria para contar o que está acontecendo. Uma crônica numa hora dessas seria indecente e isso explica o tom de urgência hard news aqui no ponto final. Dálias, hortênsias, cravos e crisântemos foram conduzidas de volta às estufas. A primavera foi adiada.


Comentários