'Simples assim', o raio gourmetizador da fala (19/08/2018)

O que fazer quando se percebe que ele é o bordão da mediocridade que campeia e assusta?

Ah, como são arrogantes esses falsos humildes que chegam, de viva voz ou por escrito, e, depois de meia dúzia de platitudes sobre os dramas do momento, pontofinalizam sua desinteligência com um peremptório “simples assim”. Políticos adoram. Um deles vai tirar a todos da pindaíba riscando o nome do SPC. Outro distribuirá armas para acabar com a violência. O “simples assim” é o ato falho do Freud, o avesso do avesso do Caetano. É o inconsciente coletivo deixando escapar que está com medo. Ser brasileiro nunca foi tão complicado.

A turma do “simples assim” é a mesma que gostava de “agregar valor”, falar “a nível de”. São clichês dos bacanas, curtidores de um penduricalho na ponta da língua. Armam-se de ideias prontas que vão sendo repetidas, repetidas, e, quando se percebe, está todo mundo falando a mesma bobagem.

Recentemente inventou-se o maneirismo da autorreferência. O sujeito dá meia-trava na falação, se auto-pergunta “o que que acontece?”, e ele mesmo, sempre com um verbo caudaloso, responde com mais um chorrilho de palavras sobre seu desacontecimento. Quando alguém no meio de uma conversa dá o breque do “que que acontece?”, eu interrompo — nada, meu amigo. Nada acontece além dessa nossa tremenda perda de tempo.

A língua é metida, não gosta de ficar por fora. O “simples assim” é o novo preto. O “viés” da vez. O raio gourmetizador da fala. Esta praga que se intrometeu nas conversas vem geralmente arrematando o parágrafo, como se fosse um fecho de ouro dos pseudo-sabichões. O “simples assim” é o olé! dos toureiros do vernáculo. Dá a dica para que a plateia se levante e, com o anúncio da solução de todos os problemas, faça justiça ao redator com uma salva de palmas. É a versão, nas redes sociais, daquele deputado baiano aos gritos de “tenho dito!”. E já vem com ponto de exclamação embutido em sua veemência.

É dramático que o “simples assim” esteja nas bocas no momento em que a realidade nacional nunca foi tão obscura. Complicou geral. O país olha com perplexidade o desfile de candidatos a isso e aquilo outro, e de nenhum vem a linha de esperança que justifique a insistência no “simples assim”. Millôr estava certo: “O que os olhos não veem, a língua inventa”.

Clichês são coisas nossas, dão mais que chuchu na serra. Eram humildes, revelavam apenas a má escola, a ausência de livros. Granjeavam simpatia. Mas isso foi no tempo do onça. Clichê agora é verniz cultural.

Não é irritação de purista reclamando de modismos vocabulares. A língua sabe o que faz. É intrometida por natureza, vai abrindo caminho, dizendo o que lhe dá na telha — e que cada um tenha o prazer de lamber com ela as expressões que lhe forem de gosto. Depois, azeite não é meu parente, joga fora o que não presta mais. O cruel do “simples assim” é o ar sabe-tudo de reduzir a complexidade das coisas e levar a bola para casa. Jogar sozinho. Tem semelhança apavorante com as ameaças autoritárias que andam soltas no ar. Encerra a conversa, não preza a troca de ideias.

A língua é tranchã, costuma separar o joio do trigo. Hoje aqui, amanhã no lixo. Mas o que fazer quando se percebe que o “simples assim” é o bordão da mediocridade que campeia e assusta? Nada é tão simples assim.

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