Um jardim para enfrentar o 2º turno (08/10/2018)

Jardins são educativos, dão mostras diárias de que é preciso regar de afeto aquilo que você quer manter

Eu tenho um jardim. Na ausência de gatos ronronando ternuras fofas, cães amorosamente vigilantes ou peixinhos cruzando bailarinos o aquário do cotidiano, eu fujo do caos no abrigo aconchegante de um jardim. É minha realidade paralela, meu segundo turno na luta pela pacificação dos instintos e temores.

De vez em quando aparecem umas borboletas, adoravelmente poéticas, outra vez são uns besouros, assustadoramente mecânicos. Convivem sem que se batam as asas entre si, sem que se crie uma hierarquia de privilégios. De início, eu espantava o besouro e protegia a borboleta. Custei a perceber que era contra a ordem natural das coisas. Estavam empenhados, cada um ao seu modo, de flor em flor, em manter o jardim para a sobrevivência de todos. Passei a respeitar as diferenças.

Certa vez Roberto Carlos disse que gostava muito de "As rosas não falam", mas, por coerência, não gravaria a canção. Em seu jardim, na Urca, ele falava com as rosas. Eu não chegaria a tanto, mas sem tripudiar das idiossincrasias do rei. Um dia, reclamei do estardalhaço com que o aroma das sálvias ocupava os quatro cantos da plantação - e na manhã seguinte vivi a lição de ver seus galhos definhando.

Roberto Carlos fala com as plantas. Não revelou se elas ouviam. Depois do que aconteceu com as sálvias, passei a desconfiar dessa possibilidade. Pedi desculpas, baixinho, para que ninguém suspeitasse da minha sanidade, àquelas que sofreram minhas críticas. Reforcei o gesto de arrependimento plantando outro canteiro, com uma espécie de perfume menos estridente. Vão bem, obrigado.

Eu cuido do jardim por questão de herança genética, um DNA transferido de um pai que passava os dias absorvido num deles. É difícil também esquecer a emoção infantil de colocar o caroço de feijão dentro de um algodão molhado e dias depois perceber que dali, graças ao cuidado de manter o ambiente úmido, nasceu uma planta. Foi a primeira mágica de muitas gerações. A memória afetiva é adubo vigoroso.

Jardins são educativos, dão mostras diárias de que é preciso regar de afeto aquilo que você quer manter. Algumas plantas gostam de muita água, outras morrem encharcadas. Amar dá trabalho. É preciso conhecer o outro, acertar a intensidade da rega, o sol na quantidade exata. Enquanto isso, por mais que você xingue e corte um bocado delas pela raiz, as plantas daninhas se reproduzem e, inimigas do esforço alheio, avançam para acabar com todo sinal de beleza.

O jardim me serve como casulo onde o vento passa civilizado e permite zerar o QI, os olhos fitos nos sabiás-laranjeira. Eu não o desprezaria, porém, como laboratório de vida, um posto de sombra delicada sobre erros e acertos da guerra cotidiana. Como enfrentar lesmas e caramujos que, à noite, saem de seus esconderijos e se fartam das folhas da grama-amendoim? Quem nunca enfrentou uma praga?

De resto, é um jardim feliz. As trialis formam floresta amarela vigorosa, o que eu entendo como agradecimento aos bons tratos. Suas flores ajudam a suavizar o cotidiano dessa minha existência já tão comprida e vergada como compridos e vergados estão os bambus-de-jardim. As jabuticabeiras dão frutos. Não lhes sei o gosto - os morcegos percebem rápido o amadurecimento e, na calada da noite, fazem a festa. Eu não me queixo, nem monto armadilha para matar o inimigo. Jardim democrático é assim mesmo.

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