Ayrton Senna atrapalhando o tráfego em Copa


Crônica de Joaquim Ferreira dos Santos publicada em O Globo 31/12/2019



Nada é evidentemente contra o fabuloso esportista, mas o que está fazendo Ayrton Senna de braços levantados, esculpido em tamanho natural, no meio do caminho de quem anda pelo calçadão de Copacabana? Tirem, urgente, o coitado dali.

O Rio de Janeiro é uma cidade com quase a mesma população de habitantes e de estátuas, quase todas horrorosas, e eis que agora, na última semana do ano, sem que ninguém pedisse, acorda-se com o grande campeão servindo de point para selfies. O campeão não merece tamanho ridículo e muito menos ser cúmplice de uma agressão à cidade.
Ele está em frente ao Copacabana Palace, de costas para o mar, no alto de um pódio, tudo na medida para que os turistas subam nos dois outros lugares vagos e façam aquelas papagaiadas de Instagram. Senna, um cara sofisticado, morreria de vergonha.
Do Leme ao Posto 6 já estão imortalizados Dorival Caymmi, Drummond e Clarice Lispector. Todos foram moradores daquelas praias e em suas obras falaram delas, no seu cotidiano cravaram suas imagens por ali. Fazia algum sentido, embora quem tem o cenário de Copacabana para cuidar devesse se preocupar apenas em deixá-lo o mais livre possível para a contemplação.
Mas o que o coitado do Senna fez ao longo de sua fabulosa vida para aparecer ali como uma fantasma perdido, de macacão, na geografia 40 graus do posto 2? Pior. Se os outros três homenageados nas franjas do calçadão ainda estão discretos, o piloto foi posto no meio dele, atrapalhando o já tumultuado tráfego de pedestres, camelôs, patinetes etc.
A "homenagem" é de uma falta de noção absoluta. Além de esteticamente pavorosa, a estátua insere Senna num cenário que não lhe diz respeito e polui um cenário fabuloso, patrimônio da cidade, o tão cantado colar da praia de Copacabana. Parece um complô contra a natureza espetacular do Rio. Depois da muralha de quiosques deletérios, de serviços vagabundos e caros, esconde-se o melhor da cidade maravilhosa atrás de um corredor paulista de formula um.
Nenhum órgão municipal assinou o feito, que está sendo creditado como "homenagem" de uma rede de hotéis. Espera-se que o estrupício seja imediatamente retirado dali por incompatível com o local e desrespeitar um patrimônio carioca.
Ayrton Senna posto no meio do caminho confirma a lamentável impressão de que no Rio o espaço público livre é considerado um desperdício. A praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, todo domingo agora tem seu espaço, antes à disposição para a correria alegre das crianças, ocupado por feiras trôpegas de bugigangas, comidas estranhas e som altíssimo. As calçadas da cidade nem se fala - todas desaparecidas por baixo de bicicletas, ambulantes e todo tipo de desordem que só atravancam a necessidade fundamental de a população respirar, olhar sem estresse os seus iguais, conversar despreocupada, flanar, ver a moda e relaxar. Ayrton Senna não merecia estar no meio dessa bagunça.

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