Os reis magos e o bode do Trump (05/01/2020)


Crônica de Joaquim Ferreira dos Santos publicada em O Globo - 05/01/2020



Hoje é Dia dos Santos Reis, a data em que os católicos encerram o seu período de festas religiosas e botam na vitrola a música do Tim Maia. Eles descem o anjo da árvore, mastigam a última rabanada e rezam para que, assim na Terra como na letra da música, os reis magos sacudam seus pandeiros de fita e "levem os bodes da gente".
Cristo nasceu no mês passado, foi presenteado esta madrugada com ouro, incenso e mirra. Hoje, 6 de janeiro, é hora de aceitar o calendário e cair na real. Se há 2020 anos os Reis Magos do catecismo chegaram à manjedoura do Oriente Médio guiados pela estrela divina, agora precisam voltar para casa - e as notícias andam ruins. As luzes na região são as bombas do Trump.
Um dia de Reis numa segunda-feira deveria ser o primeiro dia do resto de nossas vidas cristãs, algo a ser adorado pela perfeição de agenda. Fecha o calendário religioso ao mesmo tempo que abre o da vida pagã. O espírito de todos, energizado pela temporada de congraçamento familiar, voltaria a encarar feliz a pugna do dia a dia - agora com o "plus a mais" de encontrar uma Lagoa sem árvore de Natal, pipoqueiro ou engarrafamento. Em 2020, porém, o plus é a menos. Cessaram os sinos das igrejas, bimbalham as armas de guerra.
Está encerrada a trégua católica do "paz na Terra entre os homens de boa vontade", jogados no lixo os cartões de boas festas. O homem mau volta a exercer seus podres poderes. Foram-se os tapinhas nas costas, os votos de "tudo de bom". A tradição de abrir o bolo de Reis, procurar a moeda escondida e delegar ao sortudo a tarefa de fazer o bolo do próximo ano, também corre risco - neste momento o Irã avalia, islamicamente, se haverá 2021.
Gaspar, Balthazar e Melquior eram reis sem coroas, sem reinados especificados, vindos de um vago "Oriente". Por muitos anos, causaram no humorista Millôr Fernandes, inspirador dos jovens do canal Porta dos Fundos, uma estranheza profunda por atravessarem o deserto a fim de louvar um recém-nascido cuja missão era, declaradamente, subverter a ordem. Blasfêmia do Millôr, já não importa. É tarde demais para se discutir a geopolítica bíblica e muito cedo para provocar novos coquetéis molotov.
O Dia de Reis teve prestígio até 1967 quando os militares levados ao poder pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade deram um downgrade na data. Contra a vontade das beatas que doaram ouro pelo Brasil, eles a retiraram do calendário de feriados. A festa esvaziou. Os Reis Magos nunca mais tiveram o mesmo prestígio, ninguém mais se lembrou de lhes agradecer os presentes ao menino Jesus - e o 6 de janeiro, sempre tão delicado, a maquete dos burrinhos ao redor da manjedoura de palha, passou a servir apenas como o dia de se desmontar a árvore de Natal.
É irônico que o mundo possa acabar hoje, no mesmo dia em que há dois milênios, conforme anunciado no evangelho de Mateus, esses magos desejaram a paz. Eles desconheceram fronteiras, diversidades religiosas e, num aceno por um mundo sem conflitos, foram a Belém homenagear o pequeno Messias estrangeiro. Vê-se agora, quando os reis são Trump, Bolsonaro e o aiatolá Ali Khamenei, todos pautados pelas mensagens de guerra aos diferentes, que ainda é preciso insistir com a ideia - ou então tocar Tim Maia e espantar esses bodes.


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