Aldir Blanc, mestre sala dos bares e dos cronistas


           


O que dizer de um cara que citava como grande orgulho o apelido de um de seus personagens transformado em nome de bloco, o Simpatia quase amor?
O que falar de um sujeito que abre um de seus livros, “Rua dos Artistas e arredores”, com uma crônica intitulada “Fimose de Natal”?
Seria muita embromação dizer que Aldir Blanc era uma mistura de Jorge Veiga, o caricaturista do samba, com Vagalume, um repórter da década de 1920 que saía pelas madrugadas do Rio, sem pauta, sem chefe de reportagem enchendo o saco, e depois publicava nos jornais as desimportâncias fundamentais que percebia nos puteiros da Lapa, nos restaurantes avantajados de Copacabana e na cabeça dos malandros. Aldir era por aí, mas mais.
Eu poderia dar outras sacadas pseudamente espertas, dizer que Aldir era uma espécie de Damon Runyon suburbano, que Vila Isabel substituía a Broadway do escritor americano, e que ambos procuravam um texto com a aparência de algo primitivo, básico, possível também a quem se dispusesse a sentar a bunda numa cadeira e, mó beleza, mandar brasa nas pretinhas. Ledo, ivo e crasso engano.
Aldir escrevia como o Fred Astaire dançava, as palavrinhas sapateando serelepes, divertidas, com a sensação de que tudo parecia muito fácil. Mas é melhor apagar isso. Aldir certamente acharia isso meio fresco, coisa de flamenguista.
Seria uma moleza também desfolhar aqui a árvore genealógica dos cronistas cariocas e dizer de que galho ele veio, lembrar de Lima Barreto na Zona Norte, Machado de Assis no Cosme Velho, esses caras que inventaram um Rio de Janeiro que desde então, vírus atrás de vírus, cisma todo dia de desaparecer um pouco.
Eu poderia apresentar mil e umas diatribes sofisticadas, mas Ivan Lessa (1935-2012), morador de Copacabana, ao fazer o prefácio de “Um cara bacana na 19ª DP”, já tinha me avisado. Ir por essa subliteratura crítica até poderia impressionar alguma jovem estudante de Literatura, mas seria uma roubada:
“Alma encantadora da rua é o cacete!”, escreveu Lessa. “Cronista do quotidiano é os tinflas! A vida como ela é é a mãe! Quem falou em Ponte Preta tá com a mão amarela e riquiqui pão-de-ló, macaquinho sobe e desce, um dois, três, não aparece! O Aldir é normal. Normal acima de tudo. Aldir o normal – um personagem para Robert Crumb ou o Jaguar desenharem”.
É de morrer de rir, um cara normal desenhado pelos desmiolados  Crumb ou Jaguar, tarados de ponta da imaginação sacana, e evidentemente Aldir, um vascaíno nascido junto com o expresso da vitória no final dos anos 1940, era um dos textos menos normais entre os que perfilam no balcão de cronistas cariocas.
Ele não posava posteridade. Dava a impressão de escrever sempre de calção, havaiana, e lá ia ele pela rua Garibaldi, um gole de cerveja com o Melo, uma filosofia do Baiano, uma sardinha qualquer no Siri, e pronto, mandava para a gráfica “Velório no Catumbi”, “Abaixo a papagaiada” e outros clássicos.
Bala com bala, balacobaco, lusco-fusco, Aldir ia deixando que as palavras pingassem com jeito de fala esperta, como se fosse um papo de esquina, uma naturalidade descompromissada de conversa jogada fora, tudo daquele jeito sem fardão, sem goma, que, qualquer um que escreve sabe, é a pedra ametista dos sonhos de um escritor. Dá a impressão de ter sido a maior moleza, mas só os craques, Danilos, Sabarás, Pingas, Bellinis, Dinamites, Romários, sabem como é que dói.
Eu sei que vai ter um monte de gente lembrando de Stanislaw Ponte Preta, Carlinhos de Oliveira, João do Rio, Joaquim Manuel de Macedo, Marques Rebelo, esses caras que antes de Aldir andavam de um lado para o outro na cidade. Todos historiaram com a pena leve as minudências que nos formataram, as comidas que nos argamassaram e os despachos que armamos nos altares das esquinas.
As crônicas de Aldir juntam essa gororoba e mais espinhelas caídas, vinho reconstituinte Silva Araújo, quintais com pais de santo, sogras fofoqueiras, primas asmáticas, pelada na rua dos Artistas, botequins de canalhas comoventes, corja de salafrários, e tudo regado num capilé sincopado, uma sonoridade de linguiça-e-paio-e-boi-zebu, tudo tão diferente que talvez precisasse também juntar a esse panelão de referências um Noel Rosa, um Billy Blanco, um Geraldo Pereira, sambistas-cronistas. Sem esquecer que, para confundir ainda mais o perfil, Aldir gostava mesmo era de jazz e literatura policial.
Enfim, eu poderia esticar ao máximo essa conversa sobre o cronista Aldir Blanc, glória de muitas lutas gloriosas, e jogar no chão de serragem o primeiro gole para o novo santo das letras brasileiras. Já se faz hora, a tarde cai como um viaduto. Eu pediria para as despedidas que baixassem neste texto todos os personagens de uma Zona Norte imortalizada por ele, uma espécie de Macondo suburbana. A honra maior, a palavra final, será de Celeste, uma das musas mais constantes. Nesta crônica, publicada em “Porta de tinturaria”, Aldir descreve Celeste pronta para mais um baile de carnaval:
“Celeste? Romântica desvairada, dessas que não existem mais. Desde meninas, seus brinquedos preferidos eram os livros de histórias, com duendes, bruxas, castelos, ogres, fadas, rainhas perversas, príncipes e beijos que fazem levantar – o que, convenhamos, não chega a ser novidade. Sonhava com o seu fabuloso inglês cavaleiro-andante, o coronel branco ajaezado, os soberbos bigodões. Sei que não é comum incluir esses bigodões num príncipe, mas os leitores hão de compreender: o sonho é da Celeste e não meu, que de bigodões quero distância.
Esse temperamento fazia com que, em todo carnaval, a Celeste usasse a mesma fantasia azul, amálgama de princesa e fada boa, com um longo chapéu cônico, do qual saíam véus também azuis. Nas mãos etéreas, uma varinha de condão, e na boca, solitário e lírico, um dente de ouro. A bem dizer, não brincava o carnaval. Sonhava-o, com sua bela roupa, e através das serpentinas apertava os olhos ansiosos à procura de seu herói. Celeste era míope.”

Comentários