Adamastor, o estranho homem puro


Adamastor, o estranho homem puro, me foi apresentado pelo cronista Antonio Maria, coleguinha aqui do GLOBO nos anos 50. Ele sacava o sujeito da máquina de escrever sempre que estava receoso de falar da Humanidade na primeira pessoa. Era o seu lado sombrio, embora fosse difícil encontrar réstia de sol em qualquer canto da alma de Maria, o fabuloso autor de “Ninguém me ama\ninguém me quer”.

Adamastor é seco. Não paparica criança de colo desde o dia em que uma regurgitou na ombreira de seu terno José Silva. Desconfia das velhinhas de Copacabana porque se apavora com a possibilidade de aspirar o resíduo tóxico de seus cabelos azuis. Ajuda cego a atravessar a rua, mas sem intimidade, pois acha a turma com o mesmo olhar intrigante de sua primeira mulher. Dos mudos, quer distância. Não têm palavra. Dos gagos, corre. Não tem tempo.

O Adamastor é um grosso que gostaria de ser reconhecido pela sinceridade. Quer distância dessas pessoas que se dizem do bem, um bando perigoso de canalhas. Classifica-se autêntico, mas não do mesmo tipo do artesanato de barro, do jogo de capoeira e da mulher rendeira, coisas que lamenta com veemência por serem manifestações de almas mal cultivadas e de banco escolar medíocre. Ele manda bala. É pau, pedra e o fim do caminho, tudo reunido num cano só, a sua garganta potente, famosa nos anos 70 por ter trincado um espelho da Colombo no grito. Serviram-lhe um croquete. Não gostou – e, ao berro de “Vou para a Cavé”, deu-se o trinco que ainda está lá.

Sua pontaria é franca. Atira a esmo. Sem meias palavras, solta os bofes. Vocifera contra o politicamente correto desde o tempo em que não havia o nome pomposo. Deixou de ir ao Municipal por causa do festival de tosse da plateia provecta. Vomitou outro dia quando lhe mandaram um abraço na alma. Mete a lenha em tudo que soe tentativa cristã de carimbar o passaporte rumo à eternidade. Processou por danos morais uma estudante que lhe ofereceu lugar no metrô.

O cara parte para cima. Nos tempos do Antonio Maria, ele falava as verdades que o cronista tinha receio de assinar. Maria detestava carnaval, e todo fevereiro-e-março se mandava para Teresópolis. No jornal, cabia ao Adamastor esculhambar com a coisa. Onde todos viam poesia no desfile das escolas de samba, “o estranho homem puro” enxergava triste procissão. A porta-bandeira, segundo Adamastor, apresentava “um olhar desamparado”. Os três dias de Momo, unanimidade alegre da imprensa carioca, na coluna em que Maria cedia o espaço para seu alterego, pareciam algo mais doloroso que enterro de parente. “Pobres moças, as dos carros alegóricos”, escrevia.

Pois, estava eu, posto no natural desassossego de quem procura assunto, na esquina de Santa Clara com Barata Ribeiro, quando veio de lá o Adamastor. Carregava um embrulho com barbante e, antes do “Como vai essa bizarria¿”, seu cumprimento tradicional, reclamou apontando para o pacote. Tinha procurado uma bisnaga por toda Copacabana. Necas de pitibiriba. Detesta o esnobismo do pão francês, que de francês tem apenas a pretensão, e suspirou meia dúzia de vezes, nostálgico, ares de quem, definitivamente, perdera a fé nos homens. Sentia-se saudoso da elegância longilínea do velho pão. Aquilo, sim – e sacudiu com desdém o pacote com os franceses malditos.

Era uma segunda-feira como a de hoje e Adamastor mostrava-se no melhor dos seus dias, quer dizer, permanecia convicto de que nada ao redor valia a pena. Vinha dos Correios, de onde mandara para a redação do GLOBO uma carta reclamando da deformação moral que as escolas de dança, um modismo de Copacabana, está provocando. Homem que dança muito bem, ele garante, não tem caráter. Deve-se dançar apenas direitinho, a não ser que o gajo seja do balé – e nesse momento Adamastor faz olhar matreiro.

Seu único juiz é a própria sensibilidade e, por ela, corre todos os riscos de ser mal compreendido. Na esquina de Copacabana, como se estivesse no Speakers’ Corner, do Hyde Park londrino, deblaterou contra o pandemônio, o despautério e o deletério, sempre palavras com mais de quatro sílabas, porque não suporta as curtas. Julga ser influência chinfrim do inglês, onde tudo é cool, hot, nice. Adamastor gosta do português acebolado, cheio de azeitona preta, pedaço de toucinho, e diz tudo isso com a boca inconstitucionalissimamente cheia de paralelepípedos. O resto é macaquear os gringos. Adamastor prefere bisnagas e polissílabas. Entre as últimas, escolhe as proparoxítonas. Há 59 anos passa sobre elas, carinhoso, manteiga da marca Aviação.  

O homem é fiel aos seus gostos e opiniões. Acha que a barbicha identifica o mau pai de família. Já pensou em deixar o Brasil só para não ouvir gente assobiando no elevador. Adamastor cultiva manias a leite de pires. Sai da sala quando vê algum descendente de índio, certo de que é infelicidade para semestre inteiro. Deixou de acompanhar futebol pela primeira vez nos anos 80, porque se aborreceu com a quantidade de Carlão e Chicão. Homem que se põe no aumentativo, ele desconfia. Quando eles foram embora, voltou aos estádios por algum tempo, até encrencar com os Klebersons e Welersons, todos neguinhos querendo dar um branco na alma.

Na esquina de Santa Clara com Barata, evitou as mazelas óbvias, os sarneys cotidianos, porque dessa gente ele já trata com o fervor que merece nas cartas dos leitores. Adamastor detesta folclore. Classifica as festas juninas e o culto do jeca, com seus dentes careados e fala desengonçada, símbolos deprimentes da pobreza nacional. O Brasil é triste.

Foi conversa rápida. Fazia calor. Passavam essas mulheres empacotadas na última moda dos vestidos de bandagens. Adamastor ameaçou discursar sobre o que achava dos trajes. Despachei-o a tempo com um “aperte os ossos” – e lá se foi o estranho homem puro com seu embrulho amargo, sinceramente nostálgico da bisnaga que dividia com o gordo Antonio Maria.

 

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