Na cozinha com Luma de Oliveira, tomando Nescau


Caro Arthur Dapieve, seu pedido é uma ordem e aqui estou, já que assim me solicitaste fazer na crônica da sexta-feira retrasada, para prestar contas de todo o ocorrido no dia sei lá qual de novembro em que, pé ante pé, naquele jeito fingido de homem que já viu de tudo nessa vida e não tem mais porque sair correndo atrás, eu subi calmamente uma ladeira do Jardim Botânico. Por volta assim de umas cinco da tarde, o sol do outono tingindo de fogo os cabelos em contra-luz da anfitriã em brasa, eu comecei os trabalhos pedindo que o meu fosse sem açúcar. Que fosse gelado. Que fosse o que Deus quiser. Em seguida, depois de fazer tintim olhando nos olhos dela ao mesmo tempo em que ela olhava no fundo dos meus, porque as regras do bem brindar servem para qualquer drink, depois de iniciado o ritual para o qual ela havia semanas antes me convocado, eu tomei um Nescau com a Luma de Oliveira. Já a conhecia de outros carnavais, mais exatamente o de 1987. Fui-lhe lusitanamente sincero. Não me lembro de como ela estava daquela vez, nem de qualquer nesga de seu sorriso, mas que o prédio da editora Bloch, onde se deu aquela primeira vez, na rua Frei Caneca, ainda me estava nítido. Rimos. Acho que nesse momento da conversa Luma fez piada com o presídio e a expressão chave de cadeia. Rimos mais um pouco. Luma vestia jeans de grife mais nobre que a Gang mas com resultado idêntico. Caía-lhe bem no desenho dos contornos. Os ombros estavam nus, afinal o verão parecia vir subindo com força a ladeira do Jardim Botânico. Luma estava pronta para 50 graus. Fizemos um pacto. Ela com um ligeiro bigodinho de espuma preta, eu batendo com a colher na borda do copo para sublinhar o momento e também não deixar gota do líquido precioso escapulir. Pactuamos que tudo que ali declarado fosse morreria em segredo a seguir, queimado espontaneamente na lareira da sala de onde se descortina em primeiro plano as águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, em segundo as águas do oceano Atlântico e, nos dias de maior visibilidade, a torre de Belém, Portugal, porto de partida, no século retrasado, de meus antepassados lusos, uma longa aventura que contei com os olhos fitos no horizonte, como se procurasse ver vovô chegando de novo. Luma também é do lado de lá, de Niterói. Entendia o meu ponto de vista. Pareceu emocionada. De vez em quando, a título de vírgula, eu mordiscava o bolo de coco e fubá. Tinha sido feito naquela forma tradicional, com o buraco no meio. Eu disse para Luma que parecia bolo da Tia Nastácia. Ela riu. Aproveitou para dizer que havia procurado os biscoitos da marca São Luiz, uma provocação que eu lhe havia feito quando marcamos o Nescau, aquele do jingle “é hora do lanche/ que hora tão feliz”, mas a marca desapareceu, comprada por uma multinacional. Lamentamos. Sabe-se lá os caminhos porque se move uma conversa regada a Nescau, e de repente fofocávamos sobre Danuza Leão e seu desencontro amoroso com Antonio Maria. Não sei se fui eu, não sei se foi Luma, mas fiquei com a impressão que nós dois sabíamos disso. De como, por maior que seja a casa, a presença de um parceiro é capaz de sufocar o outro, até mesmo se ele estiver num cômodo muito afastado, quando a relação não está boa. Luma quer distância de casamento. Disse que não está sequer namorando. Eu fingi que acreditei e fiz aquele “hã hã” bobinho de descrença. Ela riu. Percebeu que nessas horas, quando ria, eu perdia por alguns segundos a conexão com o meu provedor, e aproveitou para mudar de assunto. Luma queria saber de uma cena do filme “Irreversível”, de Gaspar Noé, que eu havia elogiado em crônica das antigas como exemplo de sexo amável e ela, que adora o filme, que em seguida me disse adorar a necessidade de ser amável em qualquer etapa do congresso amoroso, não se recordava. Fiquei de mandar uma cópia em DVD, o que infelizmente ainda não fiz. Foi isso, Dapi, não muito mais, eu acho. O Nescau estava gostoso. Lembrei que na minha infância, antes dele, do Toddy e do Ovomaltine, eu tomava Susticau. Cantarolei um trecho de “Meu Rio”, canção em que Caetano Veloso narra sua passagem aos 16 anos pelos subúrbios do Rio e evoca o Susticau como das memórias mais deliciosas. Luma pareceu sensibilizada pela beleza da música e aproveitou, deve ter sido nesse momento, para dizer que deve toda sua energia carnavalesca ao que provém do chocolate. Fingi acreditar. A academia de ginástica que tem em casa, quase do tamanho de todo o meu apartamento (rimos), ajuda, mas o cacau industrializado, segundo ela, opera milagres em seu ser. Eu diria respeitosamente que Luma está bem. Se o Carnaval fosse neste fim de semana, ela já poderia se ajoelhar na frente da bateria e levantar a arquibancada. Impressionado, disposto a fazer com que o próximo carnaval não me seja igual ao que passou, pedi mais um copo. Foi por aí, Dapi. Não aconteceu nada parecido com aquela foto da anfitriã nua erguida pela tromba de um elefante na África do Sul, que a Playboy publicou no início do ano. Um Nescau é um Nescau é um Nescau. Tem gosto de festa, é energia que dá gosto, that´s all folks. Não reclamo. Luma em primeiro plano e o Rio de Janeiro estonteante lá embaixo – há quem tenha estudado muito mais, se doutorado em quase tudo, e a vida profissional não lhe fez a recompensa devida. Acho que Luma não me quererá mal por estar te contando tal. Não temo que a qualquer momento, posta em brios por eu estar te detalhando o encontro, ela invada a redação, a baqueta do surdo de marcação substituindo a bengala da moda, e me insurja aos gritos de “Fristão tristão”, ferindo de menosprezo o ar da minha dignidade. Luma riria muito de uma frase ridícula dessas, colocaria um ponto de Nescau encerrando o assunto e diria, bobagem, Joaquim, da próxima vez traz o Dapi. Você iria? O que você diria, Dapi, se no lugar dos seus roqueiros queridos gritando “Are you ready”, fosse a rainha da bateria da Caprichosos de Pilares sussurrando “você está pronto?” Você escreveria uma carta melhor. Vai. Quero saber o que você, criado ao sumo dos filósofos cínicos, dos pensadores céticos, dos ensaístas cítricos, dirá quando, ao final da happy hour, ela pedir o copo, mirar no fundo do que sobrou e contar como te será o amanhã a partir da análise da borra do Nescau. Vai, Dapi, e fica frio. Já disse pra Luma que você gosta quente. Abraços.

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