Passa o celular ou você morre


“Passa o celular ou você morre”, disse o assaltante me apontando a faca.

Eu estava caminhando pela ciclovia da Lagoa às 6h15m do dia 25 de dezembro quando ouvi a frase que me chegava pelas costas. Era o jeito de a realidade carioca, na data máxima da cristandade, na celebração da paz entre os homens de boa vontade, me desejar um Feliz Natal.

A frase soava evidentemente agressiva, não só pelo conteúdo. Devia ser a segunda vez que o assaltante me fazia a declaração de princípios e estava claro, pelo tom, que começava a se mostrar irritado em ver que eu continuava caminhando sem escolher entre passar o celular ou morrer.

Da primeira vez em que ele me ofereceu a opção, eu possivelmente ouvi apenas um ligeiro zumbido. A mensagem não me chegou com toda a sua urgência porque os ouvidos estavam tapados por fones. Eu escutava as 50 mais do Spotify no Brasil de 2020. Caminhava absorto, chocado com a qualidade das letras dos Barões da Pisadinha, os novos Chico e Caetano. Não podia imaginar que a vida real estava me convocando enérgica para ouvir frase muito pior.

“Passa o celular ou você morre”, precisou gritar o assaltante, talvez pela terceira vez, para que sua voz atravessasse a barreira dos fones, sobrepujasse a vulgaridade dos Barões, e me acordasse para a realidade dos fatos. Foi aí que eu me virei, vi o sujeito com a faca apontada e entendi do que se tratava.

Era minha estreia naquele tipo de cena, mas zero de surpresa. Já tinha visto dezenas de vezes a ocorrência na TV, na reprodução dessas câmeras de segurança, de definição ruim, instaladas nos postes e nas portarias da cidade. A novidade é que chegara a minha vez. Eu estava ao vivo, embora ainda não estivesse claro por quanto tempo, num dos esquetes clássicos do Rio.

A Lagoa Rodrigo de Freitas é linda, desde 1931 observada lá de cima pelo Cristo, desde sempre sobrevoada pelos biguás e, de uns anos para cá, quintal feliz das capivaras da Cora Rónai. Certa vez, em plena Segunda Guerra, o boato da presença em suas águas da esquadra inglesa do Almirante Nelson, depois de atravessar o canal do Jardim de Alah, rendeu uma crônica delicada do Rubem Braga. Desta vez é tudo verdade. Quem redige o próximo parágrafo da crônica da Lagoa-2020 é o oficial de cartório da 14ª Delegacia de Polícia:

“Narra o comunicante que na data de hoje (...) foi interpelado por um indivíduo pelas costas que narrou: ‘Passa o celular ou você morre’. Que o indivíduo empregou a ameaça verbal e estava em posse de uma faca de médio porte. O declarante entregou seu celular (...). Em seguida o elemento se evadiu pela ciclovia da Lagoa no sentido de Copacabana. (...) Era pardo, compleição física magra, utilizava cabelo baixo cor preta, não utilizava barba, sem defeito físico aparente. O elemento agiu sozinho e fugiu a pé. Não houve a subtração de dinheiro ou documento”.

2020 foi eficiente em sua coerência malvada de espalhar desgraças por 366 dias inteiros, sem folgar nem mesmo na manhã de Natal. Não foi um ano, foi um Boletim de Ocorrência. Embora ainda lhe restem quatro dias no coldre, eu me reservo o otimismo de ele estar, como o meu assaltante da Lagoa, se evadindo a pé do local do crime. Não houve a subtração de esperança em dias melhores para 2021. Sobreviveremos de novo.

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