Eu entendi a frase desde a primeira vez que ela, a mulher mais sensual do Brasil, assoprou no canto esquerdo da minha orelha direita, mas evidentemente, quem sou eu, primo?, achei que estava ficando maluco das idéias. Tantã.
Eu estava cansado. Os neurônios
começavam a fazer sinal para o banco de que precisavam de substitutos e resolvi
achar, sinceramente procurei me enganar, que havia entendido mal a frase dela.
Não podia ser aquilo. Quase onze horas da noite, uma deusa dessas, um contexto
daqueles. Só podia ser o maldito estresse fazendo efeito deletério na minha
imaginação sempre juvenil. Acontece.
Aquelas palavras por mais claras
que estivessem sendo sussurradas não faziam nexo, ou pelo menos não faziam nexo
vindo de quem vinham, dela, a mulher mais sensual do país, e projetadas na
direção de quem iam, eu, justo eu, eterno garoto cheio de espinhas a quem
nunca, nessas orelhas cansadas de tanto tentar ouvir, nunca havia sido
depositada antes uma frase tão ao mesmo tempo maliciosa, tão ao mesmo tempo
pura e cheia de possibilidades como aquela que a mulher nota dez estava dizendo
no canto esquerdo da concha auricular direita.
Era frase de apenas uma dezena de
palavras e ela ainda me ressoa nos tímpanos, dá cambalhotas no cerebelo, como
se tivesse levado um caldo em Ipanema. Foi há duas semanas. Se eu morrer amanhã
de manhã escrevam-na com letra caprichada na lápide que me cabe no cemitério de
Irajá. Aqui jaz quem viveu para ouvir – e em seguida coloquem a tal frase.
Eu estava há três horas sentado
na ponta de uma fila de autógrafos, fazendo para uma multidão de amigos
dedicatórias que no fim da noite contabilizariam 270 pequenos textos, todos
tentando expressar a cada uma daquelas pessoas queridas, com a originalidade
possível e o carinho fundamental, a felicidade de ter tamanho público no
lançamento de meu novo livro. Eu estava emocionado, mas isso não me servia de
desculpa para mal ouvir. Entendi perfeitamente cada uma das dez palavras que ela
me disse, a mulher de lábios desenhados por algum escultor Divino, um cara que
no dia seguinte, satisfeito com a obra genial, foi passar o resto dos dias numa
pousadinha em Mauá e nunca mais desenhou nada.
Sou de índole tímida. Resolvi
fazer jornalismo, como ora se vê, não por qualquer capacidade especial de
escrever ou sair feito um doido atrás das fontes. Fi-lo como terapêutica dos
motores internos, um santo remédio para deixar de ficar vermelho diante de
situações difíceis. Através dos anos, lia pela manhã todo o new journalism, do
Tom Wolf a Lílian Ross. À tarde, ouvia Nenén Prancha, o filósofo do futebol,
dizer que o jogador deve ir na bola como se fosse num prato de comida. Adaptei
a lição para as necessidades de ganhar a vida. Um tímido, no jornalismo, sequer
lancha.O repórter deve ir na notícia como se num prato de gulash. Hoje, as
considerações sobre o estilo deixo aos crítico. Prometo melhorar. Quando vejo o
que aconteceu na noite de autógrafos, analiso a cara de pau conseguida no
exercício diuturno do jornalismo – e me quedo feliz. Consegui.
Era Luma de Oliveira, vamos aos
fatos, ninguém mais que ela, a rainha da bateria de não sei mais que escola,
Luma de Oliveira em pessoa, vamos direto ao assunto, quem estava na minha
frente e, como faz na frente da bateria, como é de uso em sua concepção de
viver sob as luzes do eterno espetáculo, era Luma de Oliveira quem se ajoelhava
literalmente aos meus pés e depois de me ceder o livro para o autógrafo, depois
de me dizer uma vez a tal frase e eu não entender direito, depois de me dizer
uma segunda e eu não acreditar, era Luma de Oliveira quem estava me dizendo
pela terceira vez e não dava mais pra fingir que não ouvia:
- Joaquim, quando é que você vai
tomar um Nescau lá em casa?
Não tenho a mínima idéia do que
escrevi no livro em dedicatória. Temo que a marca do achocolatado assoprada em
meu ouvido tenha liberado de algum arquivo escondido as fichas da infância e eu
tenha me posto a relatar, sôfrego, os afluentes da margem direita do Amazonas,
a identidade secreta dos super-heróis dos quadrinhos, os doze trabalhos de
Hércules, todas as conjunções adversativas, o ataque do Flamengo de 1960 e o
nome dos vilões do Telecatch Montilla. Também não sei, nem cavuco a memória
atrás, o que respondi de viva voz à rainha da bateria. Aconteceu. Só o fato de
não ter entrado em imediato processo de convulsão e catabolismo dermatológico
já me enche de orgulho.
Eu poderia encucar com a liquidez
do convite. Tenho certeza que, diante de Hemingway, macho caçador de javalis,
Luma chamaria prum dry-martini – e já posso imaginá-la mordiscando, de joelhos,
é claro, a azeitona. Diante de Garcia Márquez, macho da solidão ibérica, aposto
que o convidaria prum mojito – e já imagino o que ela faria com as folhas de
hortelã. Eu, moleque das glórias suburbanas, poderia reclamar de ter sido
convocado para a hora do lanche, mas não o farei. Aprendi a aproveitar qualquer
possibilidade de hora feliz. Leia na minha camisa: “Queremos biscoito São
Luiz.”
Sei que Nescau tem gosto de
festa, que dá mais vontade de brincar – mas quem sou eu para cantar o resto que
Luma deixou escondido por trás desse jingle. O jornalismo, como se viu, leva a
timidez embora e traz a certeza de que nada se sabe, que é preciso perguntar
aos doutos. Se tantos sábios passaram suas vidas tentando revelar o que quer
uma mulher, não sou eu que surgirei de entre as nuvens com a resposta certa.
Quem me dera decifrar todo o pó de pirlimpimpim preto escondido quando Luma de
Oliveira ajoelha-se como quem não quer nada, com um sorriso de quem merece
tudo, e convida para rezar a vida ao jeito dela, tomar dia desses um Nescau nas
encostas do Jardim Botânico. Eu espero ter tido a humildade de dizer a ela que
sim. Claro. Marrelógico.
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