Ela era uma das moças mais finas da redação do GLOBO e recebeu com a educação de sempre a visita do arquiteto, especialista em projetos ligados à proteção do meio ambiente. A entrevista rolou dentro do protocolo do gênero. Perguntas foram feitas, respostas foram oferecidas, tudo dentro dos manuais frios e consensuais da prática – sem que a repórter tivesse dado qualquer bandeira sobre quão impressionada estava com a beleza do arquiteto.
Ao final da entrevista, informou ao jovem profissional que,
para ilustrar a matéria, precisaria tirar cópias das plantas trazidas por ele –
e foi aí que se deu o ato falho. De posse dos projetos, a repórter disse:
“Dá licença que eu vou ali xerecar”.
A ficha só caiu quando, já dando os primeiros passos, ela
ouviu o rapaz, educadamente malicioso, dizer “xereca, sim”. A repórter xerocou
os papéis, mas não teve coragem de voltar ao arquiteto para entregar os
originais. Mandou um boy fazer o serviço e, de longe, mandou um tchau
constrangido.
Eu estou me lembrando disso porque semana passada as
transmissões das Olimpíadas de Tóquio liberaram palavras inéditas na televisão
e uma delas foi a do parágrafo acima, usada para a afirmação dos poderes
femininos. Ninguém ficou constrangido. As listas de best-seller estão aí,
confirmando em uníssono que a melhor terapia de superação é botar a boca no
trombone e falar claro, meter bronca no grito primal da redenção libertária – o
revolucionário método de ligar o “foda-se”. O “xerecar”, abafado outrora, agora
é a palavra de ordem lançada na televisão pela skatista Karen Jonz. Virou
manifesto de orgulho.
O bicampeonato no futebol foi maravilhoso, a canoagem e o
boxe dos baianos também, mas disso os cronistas esportivos podem falar melhor.
A minha medalha olímpica vai para o português cru, aquele conjugado com a boca
cheia de adrenalina, quando o bicho está pegando e não faz qualquer sentido se
socorrer das mais finas belezas da última flor do Lácio. Há muitas línguas
dentro do português. Com os estádios vazios, e mais a melhoria de captação dos
microfones digitais, ouvimos desta vez a exuberante semântica dos atletas.
“Calma! Respira, boceta! Caralho!”, foi como Alisson motivou
seu companheiro, Álvaro, para voltar à quadra e destroçar sem piedade a dupla
holandesa numa partida de vôlei de praia. Eu tenho certeza que o professor
Pasquale aprovaria a adequação dessas exclamações. Há um dicionário para a
quadra de esportes, outro para a cama do casal e outros tantos mais, inclusive
para a vida pública. A língua toma suas liberdades, mas dentro das regras. Um
presidente da República que chama de “fdp” o juiz do STF desconhece esse pacto civilizatório.
Nelson Rodrigues, aquele que disse “Todas as palavras são
lindas, nós é que as corrompemos”, transformaria em Personagem da Semana cada
uma dessas deliciosas ênfases do vocabulário ditas numa competição. A televisão
portuguesa, no entanto, pediu que se proibisse tamanha expressividade de
emoções. Foi pior. Da mesma maneira que os jornais sob a ditadura militar publicavam
receitas de bolo no lugar das matérias censuradas, o boxeador Hebert Conceição comemorou
sua medalha de ouro aos gritos de “Já que ‘caralho’ não pode, é Brasil,
rocambole!”.
Como diria o narrador Luiz Roberto, em outro momento
glorioso do libertador discurso olímpico da Tóquio 2020, “Aqui não, bebê!”.
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